No jornal Público mais um artigo a propósito dos resultados recentes de concursos para apoio às artes: «Pela Primeira vez, DGARTES atribui apoios anuais e bienais sem ouvir candidatos excluídos» - Veja aqui. E como se centra nas audiências, e isso mesmo tem acontecido noutros orgãos de comunicação social, começamos este post com o que a Constituição da República Portuguesa diz a respeito, e é o que fixamos na imagem acima. Neste quadro, voltemos ao artigo, e nele se pode ler o que, aliás, tem aparecido noutras peças jornalísticas:
«(…)
A audiência dos interessados é “uma
obrigatoriedade que achamos
muito importante”, por “permitir que a administração pública
corrija erros”,
diz Mónica Guerreiro. Mas “não serve para reclamar, é para
alertar
para a ocorrência de erros: um documento que não foi visto, uma
digitalização
mal feita”, diz, acrescentando: “Mas muitas vezes os interessados
não
as usam com esse intuito.” Esta responsável diz ainda que a DGArtes
considerou
que a não realização de audiência “não prejudicaria os direitos
dos
que se quisessem manifestar”. De acordo com o Código do Procedimento Administrativo, os
interessados em contestar os resultados poderão
reclamar junto da DGArtes no
prazo de 15 dias, ou através de recurso
hierárquico junto da SEC, ou por via judicial.
“Como em qualquer processo
de contestação da administração pública, quando se
conclui que o Estado
cometeu um erro ou injustiça, o lesado recebe uma
indemnização. É assim
em qualquer sector público, as artes não são diferentes”,
diz Mónica
Guerreiro. (…)».
Olha-se para isto e a primeira reação é passar à frente, e esquecer. E porquê? Não se deteta grandeza: não se perscruta conceito, técnica, intuição. Estamos a ver uma audiência de interessados, prevista constitucionalmente (ver o número 5 do artigo acima) remetida a uma mera burocracia de registo de falhas administrativas. Depois, «o lesado recebe uma indemnização»: como se os lesados não fossemos todos nós que não estamos a beneficiar de um serviço público a que temos direito, serviço público esse que é a razão de ser da DGARTES e de quem lá trabalha. Como se estes processos irracionais não estivessem a delapidar os recursos que nos são comuns enquanto povo! E será que há consciência de que mesmo havendo quem, individualmente, não ache importante a audiência de interessados isso é irrelevante no exercício de funções públicas?, onde o dever é incessantemente procurar cumprir a letra e o espírito da lei?
Como se pode constatar, no artigo há outras passagens também ilustrativas, como esta:
“Este concurso abriu já no final de Dezembro, o que é uma coisa anómala”, reconhece a subdirectora-geral das artes. “Deveríamos abrir os concursos em Agosto, seria o prazo adequado. Infelizmente, têm aberto cada vez mais tarde.” Situação que se deve ao facto de os apoios às artes dependerem da aprovação do Orçamento de Estado na Assembleia da República e de isso acontecer “cada vez mais tarde” nos últimos anos, nota Mónica Guerreiro.
Apetece dizer, olhe que não, olhe que não, ... Depois, conceda-se, nem toda a gente tem de perceber de finanças públicas, de ciência política, de gestão orçamental. Ainda: esta «coisa anómala» não terá acontecido noutras ocasiões mesmo mais atípicas, e a viver-se, por exemplo, «em duodécimos». Que se lembre, para o período aqui em causa nem terá havido desvio aos calendários padrão ... E seria interessante saber o que é que os dirigentes da DGARTES já terão feito para alterar a «situação anómala». Por fim, admire-se a coragem de publicamente se assumir a «anomalia» - não se pode crer que seja ingenuidade -, agora há que agir em conformidade.
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Aqui chegados, ter cuidado, e não nos deixemos enredar por observações «taco a taco», como se acabou de fazer, embora tenha alguma utilidade. A questão é politica. Tudo isto tem a ver com o papel que se reconhece à cultura e às artes, enquanto serviço público, na vida das pessoas; com o montante do Orçamento de Estado que lhe é afectado; com o reconhecimento da plurianualidade inerente às atividades artísticas; com a forma como se produz legislação; com os processos para se encontrarem os dirigentes e os técnicos que na Administração Pública asseguram os serviços; com a redução do aparelho estatal e depois o recurso ao mercado; com os processos de trabalho, que não são inocentes, nomeadamente na constituição das suas equipas, e na estrutura que se dá aos orçamentos, e em especial ao Orçamento de Estado. Uma certeza: pode sair-se deste «estado de sítio», como já alguém designou o pântano em que nos encontramos. Mas sem voluntarismos, e sim com cada protagonista a fazer o que lhe compete. Com paixão, certamente. E a fazer ao mesmo tempo, em conjunto, muito do que se acabou de enumerar. E para isso há quadro institucional, há conhecimento, há práticas de referência. Mas sem o querer (e o crer) político, nada feito.