E neste ano de centenário, para quem quer saber mais, o texto seguinte de Manuel Gusmão, publicado no jornal Avante! e também disponível aqui:
Será essa paisagem social que o toca e marca ou, como preferirá dizer, o tatuará. A escolha dessa última palavra mostra rigorosamente essa marca que fica impressa, gravada a fogo na pele. Essa tatuagem, marca do ferro, ficará latejando na memória e projectar-se-á em vários aspectos da sua obra. Todos os seus romances têm como cenário a paisagem gandaresa, que marcará também presença em muitos dos seus poemas.
Quando o autor fala do lado social e do outro da sua obra, que vêm dos anos vividos na Gândara, entendemos que a sua consciência social e a sua postura ética e ideológica ficaram indelevelmente marcadas por essa pobreza dos camponeses, por essa mortalidade infantil enorme, por essa imigração espantosa e por esse mundo quase lunar de tão desolado, e se exprimiram na orientação social da sua obra, na escolha que ela faz do seu campo social e, também, da sua consciência profissional, nas características formais da sua oficina: trabalho de rigor, enxuto, labor demorado para obter a brevidade, a depuração e o despojamento. Ele próprio nos descreverá em que consiste esse trabalho oficinal.
«O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional. Para mim esse trabalho consiste em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino. É o caso da Micropaiosagem. Um texto diante do espelho. Vendo-se, pensando-se.»
No poema Soneto fiel, de Sobre o lado esquerdo, encontramos o mesmo ambiente, a mesma oficina de escrita:
Vocábulos
de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados
entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.
O
trabalho da plaina portuguesa,
as ondas de madeira artesanais
deixando
o seu fulgor nos areais,
a solidão coalhada sobre a
mesa.
As
sílabas de cedro, de papel,
a
espuma vegetal, o selo de água,
caindo-me das mãos desde o
início.
O
abat-jour, o seu luar fiel,
insinuando sem amor nem
mágoa
a
noite que cercou o meu ofício.
Uma das características que singularizam Carlos de Oliveira
é o facto de ser um autor que reescreveu insistentemente os seus livros,
como quem está permanentemente insatisfeito e espera ainda dar às suas
palavras uma perfeição maior. Entretanto, outra das características da
sua obra poética tem a ver com o facto de ela ter sido escrita senão toda,
pelo menos na sua primeira versão, durante o fascismo.
Desta circunstância guarda a poesia de
Carlos de Oliveira a sua atitude de testemunho insistente e de renovada
resistência. Carlos de Oliveira não deixará nunca através da mudança das
formas, de cantar essa noite que cerca o seu ofício. Nessa «noite inquieta»,
onde parece estar só, mas onde chegam os ecos da resistência e da luta dos
seus companheiros; nessa noite em que percorre ele próprio o caminho da Descida
aos Infernos, da viagem até ao centro em fogo da terra, donde convoca
«o apocalipse da esperança» contra «o fogo dos fáscios». (...). Leia na integra.
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