quarta-feira, 13 de julho de 2022

HOJE | 13 JULHO 2022 |«Mandrágora, de Niccolò Macchiavelli»| ESTREIA | CALDAS DA RAINHA

 





«A peça de Maquiavel surpreende pois sendo uma comédia, “imitação” do modelo greco-latino, de Aristófanes e Terêncio, escapa, desde logo na substância e na estrutura, à redução da intriga a um divertimento ocioso. Não que fosse negativo, o prazer é parte de um entendimento da vida como Maquiavel o praticou. Surpreende a maquinação da intriga coincidindo com os princípios da unidade de acção, de lugar e de tempo e também com a sabedoria do cientista político transferida para as personagens que movem a acção — o avançar da acção segue princípios de uma “arte da guerra” com as suas manobras de despiste e as suas alianças pragmáticas. E qual é a surpresa? A de tudo se conduzir na acção para um fim que, por linhas tortas e amoral, será feliz. O happy end encerra em si o adultério que a todos contenta por razões singulares, sob a forma de um abençoado e estabilizado casamento a três».

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«ESTAIS A FALAR A SÉRIO OU GRACEJAIS?»

«Benévolos ouvintes, Deus vos guarde», temos para propor uma comédia de Niccolò Machiavelli, esse mesmo cujo nome se tornou com o tempo etiqueta do mal. Maquiavel, mais conhecido pela filosofia política sintetizada em “O Príncipe”, obra póstuma logo amaldiçoada por quem de direito, afirmou-se ainda em vida como autor de comédias de sucesso. Entre elas, a primeira de todas foi “Mandrágora”. Regressa agora aos palcos portugueses, com tradução original de Isabel Lopes e encenação de Fernando Mora Ramos, numa produção que a companhia Teatro da Rainha colocará em cena no Largo da Copa, junto ao Hospital Termal, espaço nobre da cidade de Caldas da Rainha que ali adquirirá feições florentinas. Cenografia a cargo de José Serrão, figurinos de José Carlos Faria e música de Tiago da Neta.


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A propósito do Espectáculo:


Excerto: «(...) E o que há em Maquiavel que emparelha com Fernando Mora Ramos?

Eu sinto-me bem a dizer aquilo. Há frases no texto com as quais me identifico. Um tipo anda nisto há 50 anos, sempre numa espécie de batalha por um teatro que seja rigoroso e popular, no bom sentido do termo, que não seja um teatro que exclua os outros, por um esteticismo hermético ou por ser uma opção muito cultural, necessitada de referências… Porque, na realidade, ao contrário do que se diz, os clássicos são claros. Isso é uma das condições do texto clássico, o clássico abre, não é incompreensível.
Este combate pelo teatro — que fará, em breve, 40 anos na companhia, mas que na minha experiência pessoal faz 50 — , leva a que me sinta hoje mais ou menos como estava quando arrancámos com toda esta experiência, logo a seguir ao 25 de Abril. Sendo que os primeiros 10 anos eram muito prometedores, toda a experiência inicial foi muito conseguida do ponto de vista da relação com os públicos. Os espectáculos abarrotavam sempre de pessoas, havia uma enorme curiosidade pelo teatro e, portanto, as pessoas iam ver o que se passava.

Mas de algum modo o público também seria mais ingénuo. Hoje em dia, não parece ser tanto assim. Ou será igual?

O problema mais complicado é que a ditadura do consumo, os modos de entendimento por via da mediação consumista, fazem com que hoje a vida nova se tenha transformado numa vida velha. Veio uma estrutura muito organizada, com determinações económicas, que nos impõe parâmetros de um modelo económico e esse modelo introduziu essa dimensão muito forte do consumo e esta economia do consumo fez com que as pessoas, no fundo, acabassem por não ter uma relação directa com as coisas mas passassem a ter uma relação mediada pelos métodos promocionais e as fórmulas publicitárias. Eu sou anterior ao marketing. E o marketing é um mecanismo que se substitui ao objecto, qualquer coisa se pode vender, qualquer coisa se pode promover.
Naquela fase não havia quem explicasse que um espectáculo é de 4 ou 5 ou 3 ou 2 estrelas. As pessoas apareciam. Recordo-me de estar em Montargil a fazer “As duas caras do patrão”, que tinha um cenário com uma bandeira americana, e eu cortava a vinha e as linhas da bandeira eram as linhas da vinha. Numa casa do povo de dimensões vulgares, junto à barragem, um mar, tinha 800 pessoas a ver aquilo. Eu não faço a mais pálida ideia do que é que isso hoje quer dizer, só sei que, como se tratava de algo muito elementar e primário acerca da propriedade, porque é uma história básica, como diria o Eduardo De Filippo: “a casa foi abaixo”.

Estás a dizer isso e estou a pensar quão curioso é verificar que as peças que tens escolhido para fazer nesta circunstância específica em que a “Mandrágora” vai ser feita, são quase sempre clássicos ou são peças que, de algum modo, readaptam clássicos. Isso acontece porquê? Neste caso em concreto, o que há em Maquiavel que te leve a julgar fazer sentido fazê-lo? O que te levou a optar por um tipo de registo que até na linguagem parece desafiar os modos de falar na actualidade?

Portanto, Aristófanes, “A Paz” e os “Pássaros”… (...)»

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E há mais:


«Este microcosmo da Mandrágora é o retrato de um mundo contaminado pelo dinheiro, o credo, em todos os seus interstícios. Paradigma desse poder do poder de comprar é a cena de Frade Timóteo com uma “mulher rica” que lhe paga umas missas pela alma do seu defunto marido que, pelos vistos, a sodomizava. Nunca um padre foi tão negociante e contabilista, tão faminto de dinheiro. Mandrágora — a peça — que gozou do ambiente de liberdade que havia na Itália em que foi representada, nos anos vinte de 1500, será, uns anos depois, metida pela inquisição e pelas censuras de das épocas ulteriores, no índex. Será só no século XX e muito depois da guerra, a segunda, que encontrará, levada à cena, o reconhecimento do seu valor real e actualidade inultrapassada».




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