Excerto: «(...) No estado actual da cultura esse é o paradigma vigente em que uma suposta excepcionalidade da cultura desaguou num albergue espanhol em que são equivalentes uma ópera como Os Dias Levantados de Pinho Vargas, com libreto de Manuel Gusmão, ou o abre as perninhas para Deixar o Pimba em Paz de Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, os romances de José Rodrigues dos Santos ou Margarida Pinto Coelho e os de Maria Velho da Costa ou Ana Margarida de Carvalho, os musicais de Filipe la Féria ou as peças de teatro dos Artistas Unidos ou do Teatro da Rainha, dos bilhetes postais que a chamada street art planta nas cidades às exposições das galerias de arte e nos museus, uma interminável lista aqui referida aleatoriamente para tornar mais manifesta essa realidade, em que os mais alarves divertimentos ligeiros ao vivo, transmitidos pela televisão, na rádio, em streaming, que ocupam os horários com maior visibilidade. Tudo é selado como cultura, aqui e na Europa Connosco, como se pode verificar na listagem das indústrias culturais e criativas contempladas pelos programas da Europa Criativa. Nesse contexto, em que tudo é cultura para nada ser cultura, em que a cultura é um conceito flutuante, um saco em que cabem todas as indiferenciações, o Ministério da Cultura demite-se refugiando-se numa política de apoio às artes que é um pobre assistencialismo de contestáveis critérios.
Este interregno, esta paragem forçada pela pandemia deve ser um momento para profunda reflexão dos intervenientes nas áreas culturais para se pensar como inverter o estado actual em que se acelera pelas auto-estradas de um bullying cultural do excesso, excesso de actividade editorial, excesso de exposições, excesso de ruído, excesso de imagens, excesso de informação, excesso de comunicação, excesso de oferta e de consumo, todo um excesso que se sobrepõe e se intercepta contaminado pelas inúmeras formas de idiotização desta época obrigada à vertigem da velocidade e da sucessão de modas que travam ou passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, em favor da estupidez, tornando mais actual que nunca o que Musil escreveu no Homem sem Qualidades: «se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil, combatê-la». (...)».