«Elitário para todos» é o titulo deste blogue, justifica-se que se escreva sobre isso: trata-se de uma máxima de Antoine Vitez. Contrapõe ao nivelamento por baixo, tão argumentado pelos arautos dos diversos populismos estéticos, o nivelamento por cima. É uma fórmula de extrema simplicidade e poderosa, já que dificilmente pode ser contraditada, pois ninguém defende com razão possível que ao melhor e ao mais rigoroso se substitua o menos bom e imediatamente digerível. E nela se encerra todo um programa. Certamente o programa que defende e afirma que os destinatários dos objectos teatrais não são idiotas e não necessitam de tutores do gosto que para eles estabeleçam os modos como eles, os destinatários, poderão um dia entender o que eles, os tutores, entendem que eles não estão preparados para entender. Esse tipo de paternalismo que decide o que os espectadores são ou não capazes de perceber não entende que os espectadores de cada assembleia, no teatro, são todos e cada um e que a representação teatral autêntica não se propõe como objecto erudito inalcançável, mas justamente por se dar a conhecer pela via de uma duplicação da vida presentificada pelos corpos e vozes dos actores, seja ela o que for na forma, abre caminhos de experiência de ficcionar ao espectador que este próprio não prevê por ser de apreensão sensível e intelectual em acção sensorial e mental na cena, quer se trate de Racine ou de Tabori – o teatro não é um lugar em que a experiência da compreensão materialize um saber que é o saber com que se entra na sala para o ver.
No teatro o saber do espectador é problematizado pela emergência do que em cena é pensado em acto, é pensamento a emergir entre a cena e a sala e prolonga a partilha do sensível experimentado na solidão do pensamento de cada um, de que modo seja, mais imediato ou mais mediato – quem não se lembra de imagens de espectáculos com mais de trinta anos? E nesse sentido é uma escola, uma escola da descoberta de um exercício de pensamento que emerge da experimentação do objecto presentificado em cena através dos corpos do outro que em cena se nos dirige como imagens, a representação teatral, o contrário do espectáculo que age em cena como poder apenas, como imposição. E isso vale para o altamente alfabetizado como vale para o iletrado que é certamente portador de uma outra cultura específica, biográfica, o que não é exactamente o mesmo para outras formas artísticas que convocam outras exigências de conhecimento de linguagens e cronologias.
A questão central aqui é a do preconceito e tem justamente a ver com o condicionamento ideológico que estabelece que nem todos podemos ser seres pensantes e que há mesmo uns que nos governam, que exercem poderes variados, que estão encarregados de pensar por nós. E esses não são certamente os filósofos, são os outros, os intelectuais orgânicos do sistema de castas e o conservadorismo reinante, principalmente aquele que se veste dos mais diversos experimentalismos performativos, publicitários e narcisos, todos muito actualíssimos e arrojadíssimos, a começar pelos liberais berlusconianos, que redescobriram as virtudes do bordel. Não há reaccionário mais autêntico que o tipo que cavalga a onda do imediato e despreza a distância que o tempo aconselha e aquela prudência que o anacronismo ensina pelo desfasamento, pelo estranhamento, diferenciando o que se vê do que se pensa, contrariando as fórmulas do estar in essa outra maneira de uma mundivisão apenas mundana, como aquela que fazia as pessoas ir a um lugar de suposta prática artística mais para serem vistas do que para ver. Nada mais estranhamente vulgar que a frivolidade militante.
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