Keuner, o pensador
Assim se auto-nomeia este alter-ego de Brecht nas suas próprias histórias, ele é um contador de histórias. Mas mais que pensador, ou pensador de uma dada forma, Keuner é um perguntador que quando faz afirmações coloca outras tantas dúvidas. Ele abre deste modo brechas no cimento dos clichés assertivos do Grande Costume, como Brecht caracterizou uma vez a força inamovível das verdades inquestionáveis do sistema que o capitalismo gerou. É um pensamento do simples, do que nos sucede e do que sendo comum não é normalmente objecto de indagação e é filosófico, criando caminhos e processos de pensar pensando, na medida em que desencadeia alternativas ao que a realidade impõe como pragmatismo de um modo que parte muitas vezes da ingenuidade, da pergunta curiosa, na explicitação daquilo que no óbvio está oculto pela força da sua própria evidência. O senhor Keuner fala muito da violência e personifica-a como monstruosa, omnipresente e quase indefinível pelo grau da sua infiltração abrangente na realidade, como uma estranha segunda natureza, pois está em todo o lado e assim sendo é difícil combatê-la, sendo o único modo de o fazer disseminando a paz, semeando-a por todo o lado como antídoto.
Aconteceu-lhe uma vez ter tido mesmo a necessidade de dizer aos seus alunos que tinha de viver mais tempo que a violência para acabar com ela, quando o acusaram de falta de coluna vertebral, pois que talvez por medo, em dada circunstância, tivera de lhe apresentar cumprimentos elogiando-a para lhe escapar. Sabe-se que Brecht escreveu a dada altura, fugindo do nazismo, que mudara mais vezes de país que de sapatos e é conhecida a sua atracção pelos domicílios fixos, tantas vezes tivera de mudar de casa.
O senhor Keuner, o perguntador, não pratica tanto a dúvida metódica, pratica mais a dúvida espontânea, aquela que a curiosidade move na cabeça de todos – o argumento não o move tanto quanto a dúvida. Ele é uma espécie de delegado não eleito daquilo que são as dúvidas de todos nós, esse primeiro passo da pergunta, segunda etapa de um processo que porventura ajuda a compreender a realidade quando esta impõe o modo como a devem ver – não se deixando ver, porque a realidade é uma construção humana e sistémica -, pelo poder dos seus poderes de facto, pelo poder das suas formas de estruturação, das que se apresentam com a face da eternidade, afirmando que tudo volta sempre ao mesmo e nada muda. E por isso, o senhor Keuner é um cultor da dialéctica simples da pergunta que fazemos na infância e que leva à visão de que o rei vai nu. Já Cervantes fustigara o preconceito no seu maravilhoso entremez O retábulo das maravilhas pondo um conjunto de cidadãos a ver pelo filtro sujo do preconceito o que, na realidade, não era o que as personagens do entremez viam e estas viam então ouro aonde apareciam ratos e maravilhas do mesmo tipo porque o preconceito mandava. Se o rei faz de estar vestido que dirão os súbditos? Que está vestido, claro. Se a dívida pública é uma inevitabilidade que dirão os estipendiados ao seu serviço que o contrarie? Pois Keuner, o pensador, pela imposição de uma realidade que nunca permite grande folga ao pensar mais descomprometido, nem a que se fale de maçãs quando a mortandade é maior que a mortandade supostamente regulada, não pode deixar de falar das questões económicas. Ele próprio tem de sobreviver e para além de já ter ido para a bicha das mentiras vender uma histórias para comprar leite do dia, cantou umas vezes no cabaré sobre o modo como se constitui o capital inicial das grandes fortunas, tendo as pessoas ficado escandalizadas por saber que todas as fortunas nascem de esbulhos e que no princípio não é o verbo mas o saque. E fez mesmo uma conferência económica sobre o modo como associar no mesmo monopólio propósitos concorrentes, uns de sabor puritano e terapêutico, outros de sabor proxeneta e virótico (de vírus pós erótico) e escreveu uma peça a mostrar também como é que um determinando gang mafioso tomou o poder e de que modo também o poder ditatorial se ergue sobre o assassinato e o controle dos negócios do Estado como um controle semelhante ao dos negócios obscuros da economia oculta.
Mas mais que isso, o senhor Keuner, o pensador, sendo crítico também dos costumes massivos, chegou mesmo a procurar soluções de como evitar a carnificina entre os de baixo estimulando o pensamento colectivo, isto é, o hábito de pensar criticamente em conjunto como uma necessidade imperiosa dos novos tempos, tão complexos. Referia-se ele a um século vinte prometedor, apesar de tudo, mas longe desta sociedade hiper-massiva de controle que nos tolhe a mente a cada instante de vício e dependência do que sejam as práticas comunicativas e os seus instrumentos, mais as trelas que os compõem e ligam a centrais de indução à “comunicação” constante. Comunicar passou a ser uma espécie de corrente eléctrica que nos tem ligados por trelas várias a um trânsito em que não cessa a hora de ponta e os seus bloqueios, estando nós permanentemente nela. Quando dela saímos logo nela reentramos porque nos segue por toda a parte sob várias formas, sendo que uma delas é certamente a música constante que nos cerca e ensurdece. Tudo converge: as imagens que cegam, a música que ensurdece, o tacto que insensibiliza, o exercício que esgota, o estudo que é descartável, a verdade que é hierarquizada, os prazeres que se tomam rápido como comprimidos e a cabeça que anda sempre atrás do telecomando que a viciou. No meio disto, claro, cada vez mais fragmentados e divididos pela multiplicidade de tarefas que fazem de nós um novo sapiens, uma espécie de operários inconscientes da grande fábrica de pequenas tarefas em que se tornou o quotidiano – o IRS, a conta do banco na internet, o email,
as mensagens, a hora de ponta, o telejornal, a bola, a bicha da praia, o ginásio, o mesmo fim de semana de toda a gente, etc. Uma fábrica de práticas soft para a tal classe média dominante e de muitas e estranhas violências nas suas franjas favelizadas, tudo sob o regime faroeste sem lei que impera no mundo globalizado.
Mas ao que aí vem, a queda mais que provável deste esquema pobre e podre, que dirá o senhor Keuner, de novo tão necessário pelo espírito indagador? Para velhas questões, novas perguntas claro.
Fernando Mora Ramos
Aconteceu-lhe uma vez ter tido mesmo a necessidade de dizer aos seus alunos que tinha de viver mais tempo que a violência para acabar com ela, quando o acusaram de falta de coluna vertebral, pois que talvez por medo, em dada circunstância, tivera de lhe apresentar cumprimentos elogiando-a para lhe escapar. Sabe-se que Brecht escreveu a dada altura, fugindo do nazismo, que mudara mais vezes de país que de sapatos e é conhecida a sua atracção pelos domicílios fixos, tantas vezes tivera de mudar de casa.
O senhor Keuner, o perguntador, não pratica tanto a dúvida metódica, pratica mais a dúvida espontânea, aquela que a curiosidade move na cabeça de todos – o argumento não o move tanto quanto a dúvida. Ele é uma espécie de delegado não eleito daquilo que são as dúvidas de todos nós, esse primeiro passo da pergunta, segunda etapa de um processo que porventura ajuda a compreender a realidade quando esta impõe o modo como a devem ver – não se deixando ver, porque a realidade é uma construção humana e sistémica -, pelo poder dos seus poderes de facto, pelo poder das suas formas de estruturação, das que se apresentam com a face da eternidade, afirmando que tudo volta sempre ao mesmo e nada muda. E por isso, o senhor Keuner é um cultor da dialéctica simples da pergunta que fazemos na infância e que leva à visão de que o rei vai nu. Já Cervantes fustigara o preconceito no seu maravilhoso entremez O retábulo das maravilhas pondo um conjunto de cidadãos a ver pelo filtro sujo do preconceito o que, na realidade, não era o que as personagens do entremez viam e estas viam então ouro aonde apareciam ratos e maravilhas do mesmo tipo porque o preconceito mandava. Se o rei faz de estar vestido que dirão os súbditos? Que está vestido, claro. Se a dívida pública é uma inevitabilidade que dirão os estipendiados ao seu serviço que o contrarie? Pois Keuner, o pensador, pela imposição de uma realidade que nunca permite grande folga ao pensar mais descomprometido, nem a que se fale de maçãs quando a mortandade é maior que a mortandade supostamente regulada, não pode deixar de falar das questões económicas. Ele próprio tem de sobreviver e para além de já ter ido para a bicha das mentiras vender uma histórias para comprar leite do dia, cantou umas vezes no cabaré sobre o modo como se constitui o capital inicial das grandes fortunas, tendo as pessoas ficado escandalizadas por saber que todas as fortunas nascem de esbulhos e que no princípio não é o verbo mas o saque. E fez mesmo uma conferência económica sobre o modo como associar no mesmo monopólio propósitos concorrentes, uns de sabor puritano e terapêutico, outros de sabor proxeneta e virótico (de vírus pós erótico) e escreveu uma peça a mostrar também como é que um determinando gang mafioso tomou o poder e de que modo também o poder ditatorial se ergue sobre o assassinato e o controle dos negócios do Estado como um controle semelhante ao dos negócios obscuros da economia oculta.
Mas mais que isso, o senhor Keuner, o pensador, sendo crítico também dos costumes massivos, chegou mesmo a procurar soluções de como evitar a carnificina entre os de baixo estimulando o pensamento colectivo, isto é, o hábito de pensar criticamente em conjunto como uma necessidade imperiosa dos novos tempos, tão complexos. Referia-se ele a um século vinte prometedor, apesar de tudo, mas longe desta sociedade hiper-massiva de controle que nos tolhe a mente a cada instante de vício e dependência do que sejam as práticas comunicativas e os seus instrumentos, mais as trelas que os compõem e ligam a centrais de indução à “comunicação” constante. Comunicar passou a ser uma espécie de corrente eléctrica que nos tem ligados por trelas várias a um trânsito em que não cessa a hora de ponta e os seus bloqueios, estando nós permanentemente nela. Quando dela saímos logo nela reentramos porque nos segue por toda a parte sob várias formas, sendo que uma delas é certamente a música constante que nos cerca e ensurdece. Tudo converge: as imagens que cegam, a música que ensurdece, o tacto que insensibiliza, o exercício que esgota, o estudo que é descartável, a verdade que é hierarquizada, os prazeres que se tomam rápido como comprimidos e a cabeça que anda sempre atrás do telecomando que a viciou. No meio disto, claro, cada vez mais fragmentados e divididos pela multiplicidade de tarefas que fazem de nós um novo sapiens, uma espécie de operários inconscientes da grande fábrica de pequenas tarefas em que se tornou o quotidiano – o IRS, a conta do banco na internet, o email,
as mensagens, a hora de ponta, o telejornal, a bola, a bicha da praia, o ginásio, o mesmo fim de semana de toda a gente, etc. Uma fábrica de práticas soft para a tal classe média dominante e de muitas e estranhas violências nas suas franjas favelizadas, tudo sob o regime faroeste sem lei que impera no mundo globalizado.
Mas ao que aí vem, a queda mais que provável deste esquema pobre e podre, que dirá o senhor Keuner, de novo tão necessário pelo espírito indagador? Para velhas questões, novas perguntas claro.
Fernando Mora Ramos
Sem comentários:
Enviar um comentário