terça-feira, 30 de junho de 2020

MANUEL AUGUSTO ARAUJO |«A cultura nos seus labirintos»


Excerto: «(...) No estado actual da cultura esse é o paradigma vigente em que uma suposta excepcionalidade da cultura desaguou num albergue espanhol em que são equivalentes uma ópera como Os Dias Levantados de Pinho Vargas, com libreto de Manuel Gusmão, ou o abre as perninhas para Deixar o Pimba em Paz de Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, os romances de José Rodrigues dos Santos ou Margarida Pinto Coelho e os de Maria Velho da Costa ou Ana Margarida de Carvalho, os musicais de Filipe la Féria ou as peças de teatro dos Artistas Unidos ou do Teatro da Rainha, dos bilhetes postais que a chamada street art planta nas cidades às exposições das galerias de arte e nos museus, uma interminável lista aqui referida aleatoriamente para tornar mais manifesta essa realidade, em que os mais alarves divertimentos ligeiros ao vivo, transmitidos pela televisão, na rádio, em streaming, que ocupam os horários com maior visibilidade. Tudo é selado como cultura, aqui e na Europa Connosco, como se pode verificar na listagem das indústrias culturais e criativas contempladas pelos programas da Europa Criativa. Nesse contexto, em que tudo é cultura para nada ser cultura, em que a cultura é um conceito flutuante, um saco em que cabem todas as indiferenciações, o Ministério da Cultura demite-se refugiando-se numa política de apoio às artes que é um pobre assistencialismo de contestáveis critérios.
Este interregno, esta paragem forçada pela pandemia deve ser um momento para profunda reflexão dos intervenientes nas áreas culturais para se pensar como inverter o estado actual em que se acelera pelas auto-estradas de um bullying cultural do excesso, excesso de actividade editorial, excesso de exposições, excesso de ruído, excesso de imagens, excesso de informação, excesso de comunicação, excesso de oferta e de consumo, todo um excesso que se sobrepõe e se intercepta contaminado pelas inúmeras formas de idiotização desta época obrigada à vertigem da velocidade e da sucessão de modas que travam ou passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, em favor da estupidez, tornando mais actual que nunca o que Musil escreveu no Homem sem Qualidades: «se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil, combatê-la». (...)».

domingo, 28 de junho de 2020

MANUEL CARVALHO DA SILVA | «O coronavírus é um vírus muito discriminatório: começa por preferir idosos e pessoas com saúde frágil, gosta de trabalhadores das periferias urbanas, delicia-se com imigrantes desprotegidos, com trabalhadores precários e temporários e, vai-se lá saber porquê, até distingue ramos de atividade - a indústria de processamento de carnes, a construção civil e, claro, os profissionais de saúde e de prestação de cuidados a idosos»


Excerto:
«(...)
Apanhadas no turbilhão da covid, parte significativa dessas populações teve de continuar a trabalhar. O seu trabalho não pode ser feito a partir de casa e sem ele todos os cidadãos teriam ficado privados de bens e serviços essenciais e impedidos de se confinarem. Encontraram, no seu vaivém diário, transportes servidos a meio gás, muitas vezes apinhados como dantes. Passaram os dias em espaços de trabalho sem a necessária higienização e adequadas medidas de proteção, espaços esses tão congestionados como as festas de aniversário de que o coronavírus gosta para proliferar.
Agora, na Grande Lisboa, há mais contaminados que em todas as outras regiões. No início da pandemia viveu-se essa situação nas periferias industriais da região do Porto. E são tão patéticas as afirmações que no início da pandemia insinuavam que a sua extensão no Norte era inerente a pressupostos défices culturais da população, como aquelas que hoje atribuem as culpas do alastramento na região de Lisboa aos descuidos dos cidadãos que aqui habitam.
Sem diminuir a condenação de todos os descuidos e desrespeitos, há que dizer: o problema central é nunca termos estado todos no mesmo barco. E o mais perverso é que nas entrelinhas do discurso público se vão encontrando alusões, por enquanto envergonhadas, a "bairros perigosos" e "classes perigosas" que devem ser confinados com todo o rigor.
O coronavírus é um vírus muito discriminatório: começa por preferir idosos e pessoas com saúde frágil, gosta de trabalhadores das periferias urbanas, delicia-se com imigrantes desprotegidos, com trabalhadores precários e temporários e, vai-se lá saber porquê, até distingue ramos de atividade - a indústria de processamento de carnes, a construção civil e, claro, os profissionais de saúde e de prestação de cuidados a idosos. (...)».

sexta-feira, 26 de junho de 2020

NO DIA DO ANIVERSÁRIO DE GILBERTO GIL | lembremos discurso de posse como Ministro da Cultura | INTEMPORAL POR UM MINISTÉRIO DA CULTURA EM TODOS OS RECANTOS DO PAÍS




«(...)E o que entendo por cultura vai muito além do âmbito
restrito e restritivo das concepções acadêmicas, ou
dos ritos e da liturgia de uma suposta "classe artística
e intelectual". Cultura, como alguém já disse, não
é apenas "uma espécie de ignorância que distingue
os estudiosos". Nem somente o que se produz no âmbito
das formas canonizadas pelos códigos ocidentais, com as
suas hierarquias suspeitas. Do mesmo modo, ninguém aqui
vai me ouvir pronunciar a palavra "folclore". Os vínculos
entre o conceito erudito de "folclore" e a discriminação
cultural são mais do que estreitos. São íntimos. "Folclore" é
tudo aquilo que - não se enquadrando, por sua antigüidade,
no panorama da cultura de massa - é produzido por gente
inculta, por "primitivos contemporâneos", como uma
espécie de enclave simbólico, historicamente atrasado,
no mundo atual. Os ensinamentos de Lina Bo Bardi me
preveniram definitivamente contra essa armadilha. Não
existe "folclore", o que existe é cultura.
Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa,
se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como
aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o
meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um
povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade
e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a
soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. (...)»

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E PARABÉNS GILBERTO GIL ! juntamo-nos às homenagens.

Gilberto Gil completa 78 anos e recebe uma linda homenagem dos maiores nomes da MPB