sábado, 24 de dezembro de 2016

A SÍNTESE | «a desvalorização objetiva da cultura» | NEM POR SER NATAL O PODEMOS ESQUECER


José Carlos Vasconcelos no Editorial do JL
desta semana

EDITORIAL
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Cornucópia, um ‘adeus português’

«Há ja três ou quatro anos que Luis Miguel Cintra vinha alertando para o facto de não ser possível, com os cada vez mais escassos recursos de que dispunha, por força dos cortes nos apoios concedidos, a Cornucópia fazer a espécie de teatro e manter a qualidade e exigência que a si própria se impunha. Fundada há 43 anos, em 1973, a Companhia criada por Cintra e por Jorge Silva Melo (que em 1980 a deixou) desde o início constituiu um “caso” singular no nosso teatro. Querendo chegar a um diversificado largo público, com espetáculos de garantida qualidade, a liberdade conquistada a 25 de Abril de 1974 veio-lhe, como a todos, abrir portas e janelas ao sonho e à urgência de fazer coisas. E quantas e como o fizeram...  Assim, a história de mais de quatro décadas da Cornucópia já preencheu, só com base nos espetáculos que levou à cena, dois alentados volumes, o segundo deles lançado no sábado, 18, na sessão com que a Companhia anunciou o seu fim. Mas o que não "cabe"  nesse tipo de registo(s), é a grande dignidade e qualidade que sempre marcou o seu trabalho e o inestimável contributo que deu para a cultura e o teatro portugueses. De muitos modos e em muitos sentidos. Do exigente repertório, no qual avultam os clássicos de várias épocas, até à seriedade e o nível artístico com que são representados e ao rol de atrizes e atores que aí se formaram, começaram ou atuaram. Sem esquecer ou minimizar, em relação à Cornucópia, outras importantes companhias independentes há muito em atividade, sem esquecer também, para efeito de distribuição de verbas, como é essencial a existência de boas companhias nas várias zonas do país, deve-se reconhecer que a companhia  tem um lugar muito próprio, até de algum modo simbólico, icónico, no teatro nacional. Como o tem o Luís Miguel, justamente distinguido com múltiplos prémios, sobretudo pela sua ação e o seu exemplo na Cornucópia, sem prejuízo todo o seu magnífico trabalho como ator e encenador. Não atendendo a nada disto, os referidos indispensáveis apoios foram minguando nos últimos anos para a Companhia, como para tudo que é cultura, sendo hoje cerca de metade do que já foram. O que levou a este fim anunciado. Com a contribuição, talvez, dos problemas de saúde e de idade de Cintra, indissociável de um projeto que sem ele não seria o mesmo, se é que seria viável, questão que creio ele próprio em tempos ter colocado. Problemas, aqueles, que vão diminuindo a capacidade para a verdadeira luta e prova de “resistência” que é (e nós aqui no JL que o digamos…) criar e manter, em Portugal, projetos artísticos, culturais, cívicos, que façam um trabalho sério e de fundo, prolongado no tempo. O fim da Companhia? Apesar de tudo, todos esperamos e desejamos que não. Embora talvez já seja tarde para não ser... A louvável presença e intervenção do Presidente da República no sábado, manifestando solidariedade e vontade de contribuir para evitar esse fim anunciado, bem assim a presença e as palavras do atual ministro da Cultura, ainda deixam uma ténue réstes de esperança em que a Cornucópia continue, com o Luis Miguel, a Cristina Reis (a excelente cenógrafa que há anos o acompanha na sua direção) e demais integrantes. Claro que se levantam muitos problemas, que aqui não possos agora abordar, sobre os financiamentos, as diferenças que se podem ou devem, ou não, estabelecer entre companhias - e por mim entendo que sim, com base em critérios claros e em que a subjetividade das avaliações fique restrita ao mínimo, etc. Mas, em última análise, tudo vai sempre, infelizmente, dar ao mesmo: a desvalorização objetiva da cultura, setor que recebe menos de 0,2% do Orçamento de Estado, quando já recebeu o triplo e quando pelo menos desde os Estados Gerais para uma Nova Maioria, de que "saiu" o primeiro governo de António Guterres, a meta fixada como justa e necessária é de 1% do OE».
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PS  Já depois de escrito este comentário, em comunicado (ler notícia na p. 4)  a Cornucópia confirmou que iria acabar.

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