segunda-feira, 9 de junho de 2014

«Democracia, voto e eleições enquanto rumo a um futuro…»



Democracia, voto e eleições enquanto rumo a um futuro…

A democracia não se resume ao sistema eleitoral, embora o sistema eleitoral, e os seus resultados, digam a qualidade democracia, as suas qualidades intrínsecas – mais pela realidade revelada para além dos partidos do que pelos resultados em si, são um tipo de retrato do país. Se a abstenção contasse como um vírus reconhecível do sistema que fosse necessário conter, esta teria de ter um destino, uma solução, já que sai quase sempre vitoriosa – mesmo sem maioria absoluta, quando assim é - e não é admissível que, por sistema, a maior parte dos eleitores não encontre representação – nesta perspetiva a democracia seria também necessariamente aquele conjunto de fatores económicos, logísticos, de qualidade de debate político no espaço público – que os privados serviriam, servindo o bem comum – e fundamentalmente de fatores culturais que, indissociáveis do momento eleitoral, pelo contrário seu aquém substantivo ideológico aberto, propulsor e estimulante, enraizado no corpo da nação, permitiriam à democracia justamente a expressão democrática superadora da abstenção (sua negação). Isto é: a qualidade da opinião expressa dos votantes na qualidade da opinião programática dos partidos num contexto de abstenção irrelevante porque trabalhada, combatida culturalmente, não apenas em eleições, mas na expressão diária da vida democrática enraizada, a que vinculava eleitores e eleitos numa prática política transparente e vitalizada. O relevo da abstenção põe em causa este sistema e a normalidade do seu uso deficiente aceite pelos partidos, contentes com as suas “enormes vitórias” ou com as “suas previsíveis vitórias” futuras, como aliás acontece com a não validação vinculativa das votações em referendos quando a abstenção vai para além dos 50%. Teria de se pensar outra coisa talvez, mas não o tal voto obrigatório. Se este fosse, obrigatório, quantos teriam sido os brancos e nulos?

Se essa experiência fosse possível, a da verdadeira qualificação cultural pela qualificação dos votantes (repito, cultural, politicamente sustentada, o que significa ter o problema do pão, da paz, do emprego, da liberdade e mesmo da liberdade do gosto – que nada tem com o mercado, sendo hegemónico, mas com a qualidade da escola e da língua, com a experimentação da cultura artística e do gosto fora da esfera do consumo - pelo menos consciencializados) estaríamos então noutra realidade, a desejada pela hipocrisia dos partidos de poder como promessa e desejada pela população portuguesa como horizonte desde Abril, é esse o significado profundo de integrar a tal Europa que nos fugiu. Esta é a questão da democracia. Estando situados nessa qualificação democrática da – democracia -, por hipótese, talvez fossemos já essa Europa que procuramos – procuramos, desejamos? Esta questão do desejo não é de desprezar, os portugueses têm fortes ligações a um imaginário que ainda será o seu futuro melhor, quem sabe? Integração europeia simplesmente ou deveríamos, com políticas substantivas, competência e menos folclore diplomático, procurar uma identidade contemporânea, mais hibrida no que nos é matricial com o que é atual, mais relacionada com a herdada nos rumos mais profundos da nossa história? O que não significa nem glorificações balofas, nem saudosismos cretinos, mas uma projeção identitária aberta a devires menos só orçamentais e creditícios, mais linguísticos e consequentemente geográficos, culturais. Por exemplo: nunca houve uma política da língua nos países de língua portuguesa, sei como muitos leitores do Instituto Camões desesperavam à espera de bibliotecas que permaneciam desparecidas entre burocracias – histórias todas kafkianas -, incompetências e puro abandono e o acordo ortográfico não tem contribuído, pelo contrário, para essa política. 
Certamente que vistas as coisas assim não haveria medida económica, legal, o que fosse, que não fosse culturalmente interpretada e ideologicamente situada, o que situaria a abstenção, ainda hipoteticamente, em valores residuais e não em valores de rejeição desta democracia por não ser o que promete. Esse é aliás outro dos problemas maiores: o da distância entre a promessa, a campanha em torno da promessa, a sua negação posterior e a campanha em torno das virtualidades positivas da própria negação. A questão da mentira, vista assim, não é portanto apenas devida à vocação do mentiroso, ela é sistémica: mente-se para chegar ao poder e no poder volta a mentir-se para o manter, tanto pela negação da promessa como por se mascarar o que efetivamente se fez, negando-se o que se fez, ou pintando o que se fez e torna a fazer, com as cores de um futuro risonho. Quem é que está sempre a falar dos sacrifícios de um presente, que se eterniza mas que, na demagogia vulgar, contra todas as evidências repetidas, trará bons novos tempos? É piorando que melhoramos e quanto mais pioramos, mais estamos perto de sair da crise – isto lembra outra narrativa muito conhecida, que aquela anedota do horizonte a desaproximar-se enquanto nos aproximamos dele conta bem.
Mas o sistema eleitoral não é apenas o ritual do voto e a sua organização, é a expressão da luta interpartidária sujeita a poderes que lhe são superiores, sombra constante da mafia financeira (dizem-na elites) dos offshores, com as conivências mediáticas viradas para a continuidade do que está “estabilizado” na crise, no espetáculo que disso mesmo faz: o modo como a campanha desinforma não criando nunca um verdadeiro ambiente de debate no que deveria ser o tal conhecimento das propostas e de horizontes de mudança, isso diz. Nesse ambiente, de todos os quadrantes se afirma o estado trágico do país numa espiral de números que não cessa, sejam os da economia, sejam os das sondagens, e as camadas de confusão vão-se somando à discussão muitas vezes centrada no epifenómeno e na questão lateral, insignificante – ou estamos na confusão da floresta ou na árvore que a esconde.

E os números não param, todos os dias estão aí a motivar a circularidade do debate, a negar a possibilidade do debate, na perspetiva de que, no espaço público, surjam formas clarividentes, em processos evidentes de solução, sequenciais e consequentes, para a crise. Em vez disso sujeitam-nos constantemente a formas de circularidade remastigada do mesmo tipo de estafado de argumentário que afasta porque só pesa, é antipedagógico. O debate deveria estimular e não afastar, fazendo com que a política que nega a si mesma a sua finalidade mais nobre, esclarecer e abrir mentes, criar rumos, afaste o cidadão em vez de o estimular, como se vê pela abstenção, também ela resultado da campanha – não exclusivamente, claro, pois há fatores históricos, uns ancestrais e outros de desespero social, veja-se o alto consumo de psicotrópicos no país ou, como agora se revelou, o facto de no país haver menos um milhão de crianças, “desaparecidas” últimos trinta anos – quem crê no futuro? Este dado é aliás aterrador sinal de possibilidade de extinção do país. Muitos eleitores estão numa verdadeira crise de sentido para as suas vidas, em resultado das políticas austeritárias, da exclusão a que foram sujeitos, muitas vezes dupla, excluídos de uma exclusão em que sobreviviam, como acontece com muita gente que perdeu o RSI ou o RMG – claro, no meio destes factos, aparece logo a notícia a dizer que havia alguém que recebia o rendimento mínimo mas tinha 100.000 euros no banco, num claro efeito de árvore a tapar a floresta, quando se sabe que dos 420.000 necessitados, em 2012, se passou, sabe-se lá como, para 360.000, em 2013, números redondos.

O que se torna também claro é que aos discursos complexos, como têm de ser os que falem da complexidade da crise através de formas claras de se revelarem aos destinatários e não do fácil verbal na ponta da língua, se substituíram há muito as imagens de marca sedutoras para a média dos média e a receção mediana: soluções sloganizadas, pensamento design, logotípico, para atrair o consumidor votante – no meio o episódio pífio, como foi, pela Ria de Aveiro acima, a atuação da parelha Rangel e Melo -, e que essa substituição, a da sujeição do debate político à fulanização estrelar e à imagem, ao mínimo mental sloganizado, inscrita no fluxo alternado do subliminar e do óbvio publicitário partidarizado, aproxima a política do futebol e do “cinema” constante das vedetas das indústrias várias, mesmo as made in Portugal – o nosso céu de estrelas de lingerie ousada e sorrisos vários, entre a qualidade da tasca de alterne e a tal ficção mimética cá feita, existe mesmo.
Isso explica, colateralmente, como tanta gente fabricada pelos média, num plano global, aliás o espetáculo é global, vem para a política, desde estrelas porno a figurantes de western meio spaghetti, e como a política se sujeita ao primado do espetáculo e ao “determinismo” económico na esfera sistémica. É um arremedo grotesco do que seria necessário fosse. A democracia está portanto profundamente doente na Europa. Talvez esteja mesmo moribunda e justamente assim consiga continuar a ser capaz de fingir-se nos seus ritos exteriores, ocupantes do território do visivo. Os estados comatosos, como se sabe, podem hoje ser muito prolongados, há máquinas para isso, capazes de criar vida artificial.

Que caminho tomar? O da regeneração que leva ao mesmo, no seu melhor, para depois se caminhar de novo para o seu pior? Ou é altura de uma grande transformação social que a aprofunde, à democracia, controlando-se os poderes que a destroem?

Tem-se de facto é a sensação de que estamos numa espécie de campeonato e que os partidos se comportam algo como clubes - essa seria uma volta interessante, a de que nos seus interiores os partidos não fossem só máquinas operacionais hierarquizadas, umas do tipo empresa, na circunstância eleitoral e outras mais militantes – de militar – ou mesmo mais tipo sociedades recreativas (o que é transversal também, entenda-se, para quem conheça o país), com muito amadorismo a que falta, muitas vezes, verdadeiro amor e sobra visão tarefeira e cegueira verbal ruminante.
Que aconteceria neste país, raciocinando por absurdo, se o Cristiano Ronaldo se candidatasse a primeiro-ministro e tivesse como opositor o partido do José Mourinho e se, surgindo também da nossa espontânea criatividade piqueniqueira, aparecesse, vindo da Luz, o Jesus, para nos salvar?

Fernando Mora Ramos

Sem comentários:

Enviar um comentário