Democracia, voto e eleições enquanto rumo a um futuro…
A democracia não se resume ao sistema eleitoral, embora o
sistema eleitoral, e os seus resultados, digam a qualidade democracia, as suas
qualidades intrínsecas – mais pela realidade revelada para além dos partidos do
que pelos resultados em si, são um tipo de retrato do país. Se a abstenção
contasse como um vírus reconhecível do sistema que fosse necessário conter,
esta teria de ter um destino, uma solução, já que sai quase sempre vitoriosa –
mesmo sem maioria absoluta, quando assim é - e não é admissível que, por
sistema, a maior parte dos eleitores não encontre representação – nesta
perspetiva a democracia seria também necessariamente aquele conjunto de fatores
económicos, logísticos, de qualidade de debate político no espaço público – que
os privados serviriam, servindo o bem comum – e fundamentalmente de fatores
culturais que, indissociáveis do momento eleitoral, pelo contrário seu aquém
substantivo ideológico aberto, propulsor e estimulante, enraizado no corpo da
nação, permitiriam à democracia justamente a expressão democrática superadora
da abstenção (sua negação). Isto é: a qualidade da opinião expressa dos
votantes na qualidade da opinião programática dos partidos num contexto de
abstenção irrelevante porque trabalhada, combatida culturalmente, não apenas em
eleições, mas na expressão diária da vida democrática enraizada, a que
vinculava eleitores e eleitos numa prática política transparente e vitalizada.
O relevo da abstenção põe em causa este sistema e a normalidade do seu uso
deficiente aceite pelos partidos, contentes com as suas “enormes vitórias” ou
com as “suas previsíveis vitórias” futuras, como aliás acontece com a não
validação vinculativa das votações em referendos quando a abstenção vai para
além dos 50%. Teria de se pensar outra coisa talvez, mas não o tal voto
obrigatório. Se este fosse, obrigatório, quantos teriam sido os brancos e
nulos?
Se essa experiência fosse possível, a da verdadeira
qualificação cultural pela qualificação dos votantes (repito, cultural,
politicamente sustentada, o que significa ter o problema do pão, da paz, do
emprego, da liberdade e mesmo da liberdade do gosto – que nada tem com o
mercado, sendo hegemónico, mas com a qualidade da escola e da língua, com a experimentação
da cultura artística e do gosto fora da esfera do consumo - pelo menos
consciencializados) estaríamos então noutra realidade, a desejada pela
hipocrisia dos partidos de poder como promessa e desejada pela população
portuguesa como horizonte desde Abril, é esse o significado profundo de
integrar a tal Europa que nos fugiu. Esta é a questão da democracia. Estando
situados nessa qualificação democrática da – democracia -, por hipótese, talvez
fossemos já essa Europa que procuramos – procuramos, desejamos? Esta questão do
desejo não é de desprezar, os portugueses têm fortes ligações a um imaginário
que ainda será o seu futuro melhor, quem sabe? Integração europeia simplesmente
ou deveríamos, com políticas substantivas, competência e menos folclore diplomático,
procurar uma identidade contemporânea, mais hibrida no que nos é matricial com
o que é atual, mais relacionada com a herdada nos rumos mais profundos da nossa
história? O que não significa nem glorificações balofas, nem saudosismos
cretinos, mas uma projeção identitária aberta a devires menos só orçamentais e
creditícios, mais linguísticos e consequentemente geográficos, culturais. Por
exemplo: nunca houve uma política da língua nos países de língua portuguesa,
sei como muitos leitores do Instituto Camões desesperavam à espera de
bibliotecas que permaneciam desparecidas entre burocracias – histórias todas
kafkianas -, incompetências e puro abandono e o acordo ortográfico não tem
contribuído, pelo contrário, para essa política.
Certamente que vistas as coisas assim não haveria medida
económica, legal, o que fosse, que não fosse culturalmente interpretada e
ideologicamente situada, o que situaria a abstenção, ainda hipoteticamente, em
valores residuais e não em valores de rejeição desta democracia por não ser o
que promete. Esse é aliás outro dos problemas maiores: o da distância entre a
promessa, a campanha em torno da promessa, a sua negação posterior e a campanha
em torno das virtualidades positivas da própria negação. A questão da mentira,
vista assim, não é portanto apenas devida à vocação do mentiroso, ela é
sistémica: mente-se para chegar ao poder e no poder volta a mentir-se para o
manter, tanto pela negação da promessa como por se mascarar o que efetivamente
se fez, negando-se o que se fez, ou pintando o que se fez e torna a fazer, com
as cores de um futuro risonho. Quem é que está sempre a falar dos sacrifícios
de um presente, que se eterniza mas que, na demagogia vulgar, contra todas as
evidências repetidas, trará bons novos tempos? É piorando que melhoramos e
quanto mais pioramos, mais estamos perto de sair da crise – isto lembra outra
narrativa muito conhecida, que aquela anedota do horizonte a desaproximar-se
enquanto nos aproximamos dele conta bem.
Mas o sistema eleitoral não é apenas o ritual do voto e a
sua organização, é a expressão da luta interpartidária sujeita a poderes que
lhe são superiores, sombra constante da mafia financeira (dizem-na elites) dos offshores, com as conivências mediáticas
viradas para a continuidade do que está “estabilizado” na crise, no espetáculo
que disso mesmo faz: o modo como a campanha desinforma não criando nunca um
verdadeiro ambiente de debate no que deveria ser o tal conhecimento das
propostas e de horizontes de mudança, isso diz. Nesse ambiente, de todos os
quadrantes se afirma o estado trágico do país numa espiral de números que não
cessa, sejam os da economia, sejam os das sondagens, e as camadas de confusão
vão-se somando à discussão muitas vezes centrada no epifenómeno e na questão
lateral, insignificante – ou estamos na confusão da floresta ou na árvore que a
esconde.
E os números não param, todos os dias estão aí a motivar a
circularidade do debate, a negar a possibilidade do debate, na perspetiva de
que, no espaço público, surjam formas clarividentes, em processos evidentes de
solução, sequenciais e consequentes, para a crise. Em vez disso sujeitam-nos
constantemente a formas de circularidade remastigada do mesmo tipo de estafado
de argumentário que afasta porque só pesa, é antipedagógico. O debate deveria
estimular e não afastar, fazendo com que a política que nega a si mesma a sua
finalidade mais nobre, esclarecer e abrir mentes, criar rumos, afaste o cidadão
em vez de o estimular, como se vê pela abstenção, também ela resultado da
campanha – não exclusivamente, claro, pois há fatores históricos, uns
ancestrais e outros de desespero social, veja-se o alto consumo de
psicotrópicos no país ou, como agora se revelou, o facto de no país haver menos
um milhão de crianças, “desaparecidas” últimos trinta anos – quem crê no
futuro? Este dado é aliás aterrador sinal de possibilidade de extinção do país.
Muitos eleitores estão numa verdadeira crise de sentido para as suas vidas, em
resultado das políticas austeritárias, da exclusão a que foram sujeitos, muitas
vezes dupla, excluídos de uma exclusão em que sobreviviam, como acontece com
muita gente que perdeu o RSI ou o RMG – claro, no meio destes factos, aparece
logo a notícia a dizer que havia alguém que recebia o rendimento mínimo mas
tinha 100.000 euros no banco, num claro efeito de árvore a tapar a floresta,
quando se sabe que dos 420.000 necessitados, em 2012, se passou, sabe-se lá
como, para 360.000, em 2013, números redondos.
O que se torna também claro é que aos discursos complexos,
como têm de ser os que falem da complexidade da crise através de formas claras
de se revelarem aos destinatários e não do fácil verbal na ponta da língua, se
substituíram há muito as imagens de marca sedutoras para a média dos média e a
receção mediana: soluções sloganizadas, pensamento design, logotípico, para atrair o consumidor votante – no meio o
episódio pífio, como foi, pela Ria de Aveiro acima, a atuação da parelha Rangel
e Melo -, e que essa substituição, a da sujeição do debate político à
fulanização estrelar e à imagem, ao mínimo mental sloganizado, inscrita no
fluxo alternado do subliminar e do óbvio publicitário partidarizado, aproxima a
política do futebol e do “cinema” constante das vedetas das indústrias várias,
mesmo as made in Portugal – o nosso
céu de estrelas de lingerie ousada e sorrisos vários, entre a qualidade da
tasca de alterne e a tal ficção mimética cá feita, existe mesmo.
Isso explica, colateralmente, como tanta gente fabricada
pelos média, num plano global, aliás o espetáculo é global, vem para a política,
desde estrelas porno a figurantes de western meio spaghetti, e como a política
se sujeita ao primado do espetáculo e ao “determinismo” económico na esfera
sistémica. É um arremedo grotesco do que seria necessário fosse. A democracia
está portanto profundamente doente na Europa. Talvez esteja mesmo moribunda e
justamente assim consiga continuar a ser capaz de fingir-se nos seus ritos
exteriores, ocupantes do território do visivo. Os estados comatosos, como se
sabe, podem hoje ser muito prolongados, há máquinas para isso, capazes de criar
vida artificial.
Que caminho tomar? O da regeneração que leva ao mesmo, no
seu melhor, para depois se caminhar de novo para o seu pior? Ou é altura de uma
grande transformação social que a aprofunde, à democracia, controlando-se os
poderes que a destroem?
Tem-se de facto é a sensação de que estamos numa espécie de
campeonato e que os partidos se comportam algo como clubes - essa seria uma
volta interessante, a de que nos seus interiores os partidos não fossem só
máquinas operacionais hierarquizadas, umas do tipo empresa, na circunstância
eleitoral e outras mais militantes – de militar – ou mesmo mais tipo sociedades
recreativas (o que é transversal também, entenda-se, para quem conheça o país),
com muito amadorismo a que falta, muitas vezes, verdadeiro amor e sobra visão
tarefeira e cegueira verbal ruminante.
Que aconteceria neste país, raciocinando por absurdo, se o
Cristiano Ronaldo se candidatasse a primeiro-ministro e tivesse como opositor o
partido do José Mourinho e se, surgindo também da nossa espontânea criatividade
piqueniqueira, aparecesse, vindo da Luz, o Jesus, para nos salvar?
Fernando Mora Ramos
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