terça-feira, 10 de junho de 2014

JORGE DE SENA num outro 10 de Junho, na Guarda


 


 
  
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E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que a grandeza paga neste mundo. Camões e a sua obra têm pago esse preço como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o mesmo. E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios. Claro que nós todos íamos logo ler as passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que, acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que aquilo, só um poema francamente pornográfico, inco mpatível com a dignidade e o decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu. (...). LEIA NA INTEGRA AQUI,  o «Discurso proferido na cidade da Guarda, durante as comemorações do “Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas”, no dia 10 de junho de 1977 — o primeiro depois da “Revolução dos Cravos”. Além de Jorge de Sena, foi orador Vergílio Ferreira, na presença do Presidente Ramalho Eanes, de altas autoridades e de enorme platéia».
 
 

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