domingo, 14 de agosto de 2011

«NÃO VEJO A QUEM POSSA DIZER: "VAMOS LUTAR CONTRA ISTO"»


No jornal Público de hoje há uma entrevista a Jorge Silva Melo (disponível online apenas para assinantes). Da edição impressa alguns excertos: 
«(...)
 Para si, é tempo de recomeço. Acontece, porém, num momento bizarro, em Portugal e no mundo.
- É um momento de grande desistência formal. Nos últimos dez, 15 anos foi estabelecido um cânone para as artes de que quase ninguém consegue escapar. No fundo, é o sarcasmo, ou a ironia, ou o cepticismo do [artista plástico] Marcel Duchamp, que alastrou por quase todas as áreas do pensamento artístico. Eu não pertenço a essa família, pertenço à família que nos anos 1970 o criticou. Portanto, neste momento, sinto-me desorientado.
- Desorientado como?   - Creio que os centros culturais em velocidade de cruzeiro - Culturgest, Maria Matos, Centro Cultural de Belém... - andam a produzir todos o mesmo espectáculo teatral, que acredita numa coisa em que não acredito de todo: a especificidade teatral, a autoria da cena sobre a autoria literária. Goldoni opôs-se, e bem, no século XVIII, à cena como autoridade última do espectáculo. Achando que a commedia dell''arte estava transformada em dogma, decidiu começar a escrever. Pertenço a essa família - os que não gostam de estereótipos. Portanto, abrir um espaço, neste momento quandohá uma espécie de família compacta de que estou afastado -, é também abrir um espaço polémico. Interessa-me. Contra aquilo que está a ser mostrado em Portugal.
-
A que se deve essa homogeneização?   - Razões estéticas e ideológicas, mas também económicas: são os espectáculos mais baratinhos do circuito dos festivais. Esse teatro parece-me apenas a degradação do que a dança apresentou nos anos 1980 e 1990, que chegou a Portugal com grandes artistas - a Vera Mantero ou o João Fiadeiro - e que está exangue. Esse movimento reproduz-se agora com um certo amadorismo, em copy paste, em espectáculos com pouco mais interesse do que o bolo de aniversário e o cantar dos parabéns. São espectáculos que atingem, acima de tudo, 50 amigos dos aniversariantes. À volta disso, tudo o resto me parece franchising. Neste momento, fazer teatro em Portugal é ir a Paris ou Londres comprar seis títulos e não haver um trabalho de criação de estilo ou do que seja. Compra-se nos festivais para a temporada seguinte e a vida continua com grande facilidade. Esse jogo não me interessa.
Portanto, abrir um espaço novo é ir contra a corrente. Económica: em princípio, não se devia estar agora a gastar dinheiro, eu vou gastar. Filosófica: não vou repetir os lugares-comuns que agora entretém as artes. E crítica: quero um espaço em que o trabalho crítico seja permanente. Isto tem público? Não sei.
- À medida que vai descascando a realidade chega sempre a uma camada que é económica e, portanto, política...
- Claro! Tem-se aceite demasiado facilmente as condicionantes económicas - políticas - que os Estados têm dito. A "festivalização" da Cultura é uma coisa evidente, depois da Cultura nacional. O pós-guerra: com a Europa desfeita, o que importava aos países que não estavam debaixo de ditaduras, como Espanha e França? Criar artes que apelassem à população inteira, uma arte nacional, que atingisse toda a comunidade letrada, muito assente na boa vontade da escola laica do Partido Comunista francês.... Essas ambições desapareceram depois da grande facada na vida cultural feita pelo [ministro da Cultura] Michel Guy: o Festival de Outono, [criado em 1972]. O que o Michel Guy, de direita, descobre é que pode, durante a temporada normal - não no Verão, como era o Festival de Avignon, mas durante a temporada normal -, ter espectáculos finíssimos, de duas, três apresentações, que toda a elite poderá ver. O Festival de Outono passa a ser a marca, a obrigação de comprar. Hoje assiste-se em Portugal à mesma coisa: quem não vai ao cinema o ano inteiro pode ir ao Indie, ao Doc. "Foste ao Doc? Sim, vi seis filmes!" Ou seja, armazenou para o seu bem-estar económico seis filmes sem ir ao cinema nas outras alturas do ano. São ritos de iniciação à sociedade promovidos por estas entidades. E isto cria um público. Tem a ver com aquela figura a meu ver tremenda que é o programador, intermediários vindos não sei de que cama que aparecem para dizer às pessoas [o que ver]. Até aqui, eram os artistas que faziam isso. Os directores de teatros sempre foram os directores da companhia que lá estava - só assim são directores, e não gestores. Por exemplo, o concurso para o S. Luiz: era para director artístico. Não sei o que quer dizer. Querem um director simples ou artístico? Se é artístico, qual o percurso artístico exigido? Não sei. Eu tenho - fiquei bastante mal classificado. Quando o [Jean-Louis] Barrault foi convidado para o Odéon [em 1959], era a sua companhia, o seu trabalho artístico que definia a programação. Era ele que convidava aqueles que respeitava. Quando o Strehler é convidado, é o Strehler que vai fazer três, quatro espectáculos [por ano] e convidar os que lhe são próximos...
- É o modelo vigente ainda na Alemanha, em França...
- Em Inglaterra também. Cá chamase director artístico a pessoas que não têm nenhum currículo artístico. Tem a ver com o poder que os artistas aceitaram que lhes fosse retirado.
- Como assim?   - Começou com a dança, em Portugal. Foi a grande modificação. Inventou formas de produção e subsistência, de invenção formal e produção sistemática que eram novas. Mas nunca conseguiu ultrapassar a dependência das instituições estatais, que acolhem as suas produções. [Essas formas] nasceram à sombra da Europália [1991] e morreram à sombra da Expo 98. Alguns, pelo seu génio individual, continuam a sobreviver, mas é um estatuto de sobrevivência, não de criação, como foi. Colocando-se na sombra das instituições, colocaram-se no pólo oposto ao do chamado "teatro independente" dos anos 1970. Nos anos 1970, o movimento foi contrário: centrífugo - uma série de pessoas que queriam trabalhar juntas, mesmo com poucos meios, começaram a criar formas para sair da rotina. A dança fez o contrário: um movimento centrípeto - voltou para a casa-mãe, para o Estado. E morreu. As pequenas companhias de teatro existem agora nos mesmos moldes. Vão passar a trabalhar regularmente com o Maria Matos, a Culturgest, substituindo a dança - que vai dançando cada vez menos. Aí desaparece o teatro que me interessa - que é a literatura. Tal como a literatura tem vindo a desaparecer. Numa sociedade dominada pela superficialidade da imagem, nas artes performativas, o que está a ser feito é a criação de imagens, acompanhadas de vagos lugares-comuns da filosofia contemporânea. Três frases de Agamben, meia de Zizek, duas de Didi-Huberman, mais três notícias de jornal e uma imagem forte e fica o espectáculo feito. Sou bastante contra.
(...)
Já agora: aqui no Elitário Para Todos quer lutar-se «Contra Isto» de que fala Jorge Silva Melo.

Sem comentários:

Enviar um comentário