Voltemos então, como prometido no post anterior, à Conferência Que Portugal Queremos daqui a 25 anos? Com o texto da intervenção de Luís Miguel Cintra e com o video sobre o Painel em que participou, que teve mais os seguintes intervenientes: José Gomes Canotilho, Mário Cláudio, Manuel Sobrinho Simões, Irene Pimentel. O moderador foi Nicolau Santos. De seguida, apenas alguns excertos, como que chamada de atenção para a apresentação completa e para todo o debate:
«Que Portugal queremos daqui a 25 anos?
É desconcertante para mim o tema deste debate. “Que Portugal queremos daqui a 25 anos?.” A pergunta, na sua aparente ingenuidade, quando lhe tentamos responder, levanta a cada palavra tanta questão complexa que com certeza garantirá uma animada conversa, mas não pode chegar, nem com certeza aspira, a nenhuma útil conclusão.
Não me passa pela cabeça que esta primeira pessoa do plural possa ser o conjunto dos portugueses. Não creio haver neste momento, nem nos tempos de que me lembro, qualquer sentimento de unidade nacional que permita reconhecermo-nos num mesmo desejo comum para o país em que vivemos e onde a maioria de nós terá nascido e que se chama Portugal. E tenho muitas dúvidas de que o desejo de cada um dos portugueses passe pelo desejo de termos um país assim ou assado ou cosido. Coisa que aliás não será necessariamente negativa. E bem se entende que muitos não gostem particularmente de ser portugueses. Quantos portugueses têm o país que eventualmente quiseram há 25 anos atrás? (...)
Mas parece que melhorámos e nas artes a internacionalização é agora prioritária fora da Europa. Mas quem não dança um samba ou um funaná, fica de fora, porque nem o ex-mundo português percebe o que falamos. (...)
Sou uma mistura de basco, francês, inglês e português, nascido em Madrid, comecei por falar castelhano, o que me interessa é conhecer os outros diferentes de mim, e sobretudo que toda a gente seja feliz, todos e cada um. E não estou a desconversar. O assunto é grave. Gostava, como toda a gente, de ser mais feliz. O trabalho dos nossos “representantes” eleitos, é trabalhar para que isso aconteça. Algum deles se lembrará? Eles sim, têm de saber o que queremos para daqui a 25 anos, não podem escapar à pergunta, porque para isso lhes pagamos. São “representantes” dos portugueses, divididos por grupos, é certo, e reduzidos a percentagens. Mas a sua competência depende de saberem responder à pergunta que aqui nos é feita. E todos terão pensado nisso? É logo aí que, para mim a porca torce o rabo. (...)
Tenho 63 anos. Já pouco importa para mim o que quero para daqui a 25 anos. O que me faz aqui estar não é com certeza dizer aos outros que quero ter um país diferente daqui a 25 anos. Se não o tive até agora, não acreditam com certeza que com 63 anos eu acredite que me vão fazer a vontade quando tiver 88. Se Deus ainda me der vida com essa idade hão-de concordar que ter um país assim ou assado ou cosido será com certeza completamente secundário. E pouco interesse terá dizer-vos que quero um serviço de saúde decente, ou melhores transportes públicos. Querê-lo-ia qualquer cidadão em qualquer país. Ou até que mais especificamente quero que aos 88 anos, se lá chegar e não estiver já privado das minhas melhores faculdades, porque casos de longevidade criativa, como o de Manoel de Oliveira vão sendo cada vez mais raros, veja finalmente reconhecido o meu trabalho e o de outros artistas, como de interesse público por um financiamento pelo Estado que me permita fazer teatro não comercial em melhores condições do que até aos 63 quis ter e não consegui.
Mas gosto de viver e quero que depois de mim a vida seja cada vez mais prezada. Só queria que daqui a 25 cada um fosse mais livre de querer do que nós somos. E tivesse mais liberdade de saber e fazer o que quer. E que todos percebessem como a sua liberdade de pensar, de escolher, de construir a sua vida, passa por um respeito pelo ser humano e por si próprio que passa por exigir conhecer como a vida e os homens podem ser diferentes disto. Passa pela construção única e pessoal de vidas diferentes para cada pessoa. 25 anos não é muito tempo. Os premiados que aqui estamos, suponho que todos já o andamos a tentar há mais tempo e ainda pouco conseguimos. Duas coisas deviam ser prioritárias para a nossa felicidade num novo conceito de liberdade que passa pelo respeito pelo outro: a total mudança do sistema de educação e a prioridade na responsabilidade pública para a chamada vida cultural de toda a gente, gastos não lucrativos, a fundo perdido, se a medida é o dinheiro, e independentes das leis do mercado. Creio felizmente que já muitos descobriram que nem vale a pena sujar as mãos e que o que importa é um regresso aos valores humanísticos capazes de voltar a conceder aos indivíduos a liberdade de ousarem ser quem querem ser, sabendo o que fazem e orgulhando-se de um novo sistema político que corresponda de facto à sua vontade.
Aos 63 já se percebe que só há uma razão: ser feliz. E que só serei feliz quando todos o formos, e que só o seremos quando estar com os outros for reconhecer o outro como outro eu, tão livre como eu teria gostado de ser. Gostaria que em 25 anos se conseguisse construir um sentido da responsabilidade individual que acredito ser indispensável para se ser feliz. Com o meu trabalho é para isso que tenho tentado contribuir. E foi a tentar que encontrei a felicidade possível. Luís Miguel Cintra.