segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

«DO CÉU AO INFERNO»

As imagens acima são recortes  do semanário Expresso desta semana e talvez o titulo  «DO CÉU AO INFERNO» possa ser a linha que tudo une. Detenhamo-nos no «inferno» com alguns excertos do trabalho «O mundo da arte está cheio de tragédias como a de José Lopes»:


«Há atores pagos em géneros, alguns recebem livros em vez de ordenado. O trabalho não é permanente. Trabalha-se três meses e está-se outros três no desemprego. Quase não há contratos de trabalho. A relação com a entidade patronal existe através de um recibo verde, uma prestação de serviço e mais nada. Os artistas não têm um regime de contratação que os enquadre na Lei Geral do Trabalho. Fazem biscates e aceitam trabalhos em restaurantes e lojas, apostam nos projetos de bilheteira. No fim, não há perspetiva de futuro e pode-se até não sobreviver.
Também foi assim com José Lopes — Zé para os amigos. Aos 61 anos e pouco menos de profissão, o ator foi encontrado sem vida na tenda onde vivia há cerca de três anos, junto à estação de comboios de Rio de Mouro, em Sintra. Nos últimos anos trabalhava apenas pelo gosto ao teatro. “Não ganhava dinheiro, mas estava vivo. Quando participava em algo, fazia-o de corpo e alma. Trabalhava como se estivesse a ganhar um milhão de euros”, conta o realizador José Oliveira.
A Junta de Freguesia de Rio de Mouro diz que a situação de José nunca foi sinalizada mas que o ator (e também músico) foi sempre acompanhado. Renovaram-lhe o Cartão de Cidadão e pediram o rendimento social de inserção. “Nem isso queria aceitar, não queria nada do Estado, só queria trabalhar. Nunca esteve ao abandono”, garante o presidente Bruno Parreira. O subsídio foi cortado recentemente porque José deixou de ir à reuniões obrigatórias. Uma vez por dia, ia ao Centro Comunitário e Paroquial de Rio de Mouro buscar uma refeição quente.
“Fulano está a dormir num bocado de cartão à porta do Jardim Zoológico. É assim que tomamos conhecimento dos casos mais graves. São os amigos, os ex-colegas que nos dizem. Os próprios não se manifestam, têm um certo orgulho, um certo ego”, explica Pedro Wallenstein, presidente da Fundação Gestão Direitos dos Artistas (FGDA), uma cooperativa que conta com mais de 3000 membros e gere um pequeno Fundo de Emergência Social que tem socorrido cerca de seis artistas por ano, situações extremas a precisar de ajuda imediata.
Formas de ação
“Agimos de várias maneiras. Podemos abrir uma conta numa farmácia, onde o artista levanta o medicamento e a fatura vem para nós. Se for caso de necessidade de alojamento temporário, fazemos acordos com a Santa Casa da Misericórdia”, continua. A FGDA oferece ainda um seguro de saúde gratuito aos seus cooperadores, alocando 10 mil euros/ano à ação social. “São situações de carência socioeconómica grave e de emergência social, que tentamos colmatar, providenciando um grau mínimo de bem-estar social para os artistas atingidos por essas situações extremas”, conclui Wallenstein.
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Vida de artista
“Vida de artista à portuguesa”, diz ao Expresso Inês Pereira, 31 anos, dez de profissão. “O meu horizonte de trabalho fixa-se nos seis meses, logo é impossível planear a minha vida”, conta a atriz. Para ter uma vida “aceitável”, Inês tem quatro trabalhos ao mesmo tempo. É professora, faz dobragens, acabou um espetáculo com o Teatro da Garagem e está a ensaiar outro com os Artistas Unidos, de Jorge Silva Melo, a companhia para que mais trabalha. “Só assim tenho um rendimento que me permite pagar a renda da casa.” “A Constituição portuguesa”, continua, “diz que o Estado deve assegurar o acesso à cultura a todos os cidadãos. Mas, para isso, tem de assegurar também a criação”. A atriz aponta o dedo aos Apoios Sustentados distribuídos pelas estruturas artísticas e garante que sempre que os resultados dos concursos públicos saem, há um conjunto alargado de artistas que é despedido. “Tenho uma amiga que ganha mais num restaurante do que a trabalhar como artista”, avança. “O que me atormenta é ver-me, a mim e a tantos outros, a fazer trezentas coisas ao mesmo tempo por uma questão de sobrevivência. Mais dois ou três anos e rebento.”
A precariedade do sector é ditada pela irregularidade do trabalho. “Um ator que seja só ator, depois de ter as suas obrigações sociais pagas, muitas vezes não ganha mais de 600 e poucos euros. Contam-se pelos dedos das mãos as pessoas que têm contrato de trabalho”, afiança Inês Pereira. É preciso muita persistência e saúde mental para aguentar, diz ainda.
O aceno de cabeça vem da parte de Guilherme Gomes, responsável pelo Teatro da Cidade, em Lisboa, e pelo Creta, em Viseu. “Estamos empobrecidos pela falta de dinheiro. A precariedade é uma tragédia no mundo da arte. E também é trágico que as pessoas tenham de desistir porque não têm condições para trabalhar. É uma perda de capital artístico incalculável”, refere.
João Brás, há 28 anos a subir aos palcos e a aparecer nos ecrãs de televisão, assegura que quando escolheu a profissão já sabia que ia ser precário. A falta de dinheiro e de contratos num mercado onde há cada vez mais gente para menos trabalho não lhe deixa dúvidas sobre a dificuldade da vida de artista. “Corro sempre o risco. Agora no teatro comercial até deixaram de pagar os meses de ensaio. Vivemos constantemente na corda bamba. É por isso que passamos o tempo a abrir e a fechar atividade.”
“Cada vez há menos atores residentes nas companhias e as estruturas só empregam pessoal para determinada produção”, avisa Bruno Schiappa. O Teatro Nacional D. Maria II, por exemplo, tem seis atores residentes. “Neste sector deve haver umas três pessoas que conseguem viver sem pesadelos”, afirma Bruno Schiappa.



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