quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Recordar ODETE

 

 


 Odete Santos deixou-nos. Isso mesmo  foi comunicado por Nota do PCP. O que mais acrescentar ao tanto que já foi dito? Tristeza. E trazemos para aqui o trabalho da imagem acima que valoriza um lado que nos é caro e a envolvia - a cultura -, a MULHER que foi muitas: rica em cada parte, de excelência pelo todo. Um excerto do que se pode ler na «Comunidade-Cultura e Arte»:

 «(...) Ainda no que toca ao campo da cultura, Odete Santos foi, também, autora da tragicomédia “Em Maio Há Cerejas” (2002, adaptada aos palcos) e da coleção de poesia “A Argamassa dos Poemas”, onde coligiu alguns dos seus prediletos autores deste género, como José Gomes Ferreira, Rafael Albertini e Manuel da Fonseca. Foi um percurso que conheceu o rasto pelo teatro já mencionado anteriormente, mas ao qual falta mencionar que se tratou de uma das partes fundadoras desse Teatro Amador de Setúbal. Aliás, seria um tubo de escape de um crescente descontentamento em relação à advocacia, mas também de um desgaste acrescido com a vida política vivida na primeira pessoa. Aliás, o teatro surge, precisamente, como uma espécie de calmante acessório, que lhe permitia o encarnar de personagens distintas e de sair da sua própria realidade. Uma das peças nas quais se destacou, entre adaptações de Gil Vicente e de Moliére, e ainda em regime amador, seria a adaptação do TAS de “Quem Tem Medo de Virginia Wolf”, escrita pelo dramaturgo norte-americano Edward Albee. (...)».

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E sobre ODETE como MARTHA em Quem  Tem Medo de Virgínia Woolf, e aquela  vida tão cheia, no jornal Público:Odete jamais será vencida. De lá estes excertos:

«(...) Porque raros são os deputados que toda a gente conhece pelo primeiro nome, e nenhum que seja tanto uma questão de pele como este, que aliás é esta, e aliás é actriz, mas daquelas que já eram antes de o ser e serão.
E como haverá quem só se lembre de arruaças televisivas, rimas de Parque Mayer e todo o espalhafato que não-fica-bem, sigamos escada acima com a prosa da tal crítica que celebra a actriz Odete Santos.
"Ela tem energia para, como se costuma dizer, uma casa de família. Sabe-o toda a gente que já a viu em actividade no Parlamento. Mas é no palco, na pele de Martha, que Odete Santos, a deputada comunista, se torna mais electrizante, mais segura de si, mais igual a si própria." Quem isto escrevia, em Abril de 2000, no PÚBLICO, era Manuel João Gomes, espectador de teatro como poucos em Portugal.
Nessa "orgia de sábado à noite" que é Quem tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albe, continuava o crítico, "assiste-se ao raro prodígio de uma actriz que acaba por mobilizar também as mais temíveis energias dos actores que a rodeiam".
Odete não só espevitava os moribundos na plateia como os outros actores em palco, e nem precisava de vestir calças - "mesmo de saia, é ela quem comanda o jogo". Generoso e vasto leitor, assim apanhou Manuel João Gomes a figura vicentina que tinha diante dos olhos.
Uma mulher capaz de sair de uma farsa de Gil Vicente para entrar um filme de Fellini, com um desvio para defender uma operária no Tribunal de Setúbal à hora de almoço. (...)
Um dos livros favoritos de Odete Santos (e ela fala dele como quem o leu mais do que uma vez) tem um burro. Platero e Eu, de Jimenez.
Quem a ouve (sobre animais ou as pessoas que foi defendendo ao longo da vida), não duvida de que esta não-estratega e não-líder defende aquilo em que acredita como uma loba defenderia as crias, irracional, contra toda a razão.
Numa dedicatória de um livro, Álvaro Cunhal chamou-lhe rebelde q.b, e até hoje ela considera esse q.b. como um alerta de disciplina.
Em mais de 30 anos de militância, fez tudo pelo partido, incluindo todas as figuras que não-ficam-bem ao defender o indefensável, Álvaro Cunhal Grande Português.
Depois de almoço, cigarro ao café, porque já foi de fumar dois maços e meio, e agora está num. Na véspera, como lhe acontece por vezes, deixou-se adormecer pelas 10 da noite e acordou esta madrugada às duas da manhã, nessa casa de Setúbal que já vem dos pais e onde vive só com os seus bichos. "Como tinha coisas para ler, sobre o acesso ao Direito no apoio judiciário, fiquei a ler um relatório do Tribunal de Contas até às sete e meia..." Hora a que voltou a dormir, para acordar hora e meia depois. "Não preciso de dormir muito, quatro, cinco horas..."
A caminho de Florença
Que vai fazer nesta sexta-feira do seu primeiro dia de não-deputada? "Vou ao centro de trabalho da Soeiro Pereira Gomes [sede do PCP], tenho lá trabalho..."
Em tantos anos de Parlamento, tem saudades de Almeida Santos, de Narana Coissoró, que já cá não estão, e agora, a pessoa com quem talvez fale mais é esta funcionária do PCP que agora vai a sair, responsável por facturas. "Ó Florbela...", chama Odete Santos. E diz-lhe: "Tenho que ir ao médico..." E Florbela, de olhos arregalados: "Ai, eu não acredito! Nunca em 20 anos de serviço entreguei um recibo da ADSE da Odete. Deve ser das pessoas que deu mais lucro [ao sistema de saúde]."
Que se passa? Já sem Florbela, Odete explica: "Tenho vários problemas, mas não trato deles. Mas agora tenho mesmo um problema que tenho de ver, na coluna. Aqui..." Seguem-se três horas de SIC depois RTP depois TVI, depois fotos para o JN, votações no plenário e uma entrevista para a rádio do PCP. Milhões de degraus. Centenas de voltas aos Passos Perdidos.
Deputados de vários partidos, de Manuel Maria Carrilho (PS) a Helena Lopes da Costa (PSD), despediram-se com cumprimentos e beijinhos.
Mais antigos que Odete, nem meia-dúzia e entre eles Manuel Alegre, que há uns dias lhe foi levar uma rosa, e quando o P2 o interpela diz que Odete é "uma grande deputada que conquistou o respeito de todos" e depois diz: "Vou ter mesmo pena."
E às seis da tarde, num gabinete deserto, de cortinas corridas e luz acesa, Odete Santos senta-se à sua mesa, ao lado de um caixote de livros que há-de levar para casa, a acender um cigarro antes de ter coragem para descer a última escada, que a há-de levar ao parque de estacionamento.
E fala da Irene Lisboa, de quem o pai, professor primário, lhe falava. Fala de como Agatha Christie se revelou pouco ao descobrir Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Dos Maias que está a reler "por causa daquele fim em que os dois amigos correm atrás de um transporte que já não apanham". Da piscina de Setúbal onde vai começar a ir nadar. Do bar Oktubrus de Setúbal onde tem amigas de tertúlia política. (...).
Leia na integra.
 
 

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