Saiu hoje no Jornal Público.
Cultura bem menor
Chega de atirar areia para os olhos de todos. Quando se diz
que a cultura não é um bem menor e que uma política de apoio à cultura é uma
política de estímulos, não se pode ao mesmo tempo, assumindo que se está a
fazê-lo indirectamente, dizer que a expressão orçamental desse apoio não é
significativa, que é apenas menos, quando na realidade é parte da asfixia de um
sector que iniciativas como Guimarães não altera – não é por fazer um sol de
felicidade instituída na eira, minúscula eira em termos nacionais, que também
faz sol no nabal que entretanto deixou de se regar. Uma política de estímulos
avulsa foi o que sempre houve e de forma sempre desconexa, descoordenada e sem
visão de país, exceptuando-se o período conhecido e reconhecido de Manuel
Carrilho/Rui Nery. Um Ministro da Cultura, e é o que Pedro Passos Coelho é
porque o seu gabinete é o Ministério que não existe e porque é o único
representante da área no conselho de ministros, não pode dizer que os 0,2% - já
foi 0,7% - do orçamento para a cultura não são significativos quando, como
ministro, deveria expressar uma visão que fosse mais que declarações genéricas
de boas intenções, por um lado, portanto um plano concreto e por outro lado
dizer que a famosa dívida ficar nos 4% é mais que tudo. Esta demagogia da
manipulação dos números nunca foi tão alquímica para efeitos de mascarar a
realidade da cada vez que se fazem declarações nacionais. Um corte de 38% nas
subvenções das estruturas de criação, subvenções que são estímulos e que estão
longe de permitir, por razões estruturais, que se pratiquem os modelos
organizativos europeus, é o contrário de um estímulo, é um acto de asfixia
deliberado. Estas estruturas de que falo são um resultado da democracia, um
resultado autónomo e não orientado, criado por aqueles que pegaram nos destinos
da cultura do e no país com as próprias mãos, são a expressão mesmo que
precária de uma componente da sociedade civil que se dedica às artes com um
desígnio de serviço público assumido e sempre praticado do 25 de Abril para cá.
Entre nós, por desconhecimento e incultura específica, nunca se organizaram sob
a forma de uma política os estímulos de modo duradouro e entrosado, com
continuidade de processos e capacidade de renovação inscrita. E o que é que
agora se está a fazer? Uma espécie de policiamento pela exclusão e asfixia, um
verdadeiro golpismo no justo momento em que se acusam os outros de desejar uma
“arte orientada”, o que é claramente gato escondido com rabo de fora pois é
inventar uma culpa antidemocrática a terceiros que não tem existência real – é
antiga esta táctica de remeter para um bode expiatório fantasmado culpas
próprias e lavar as mãos do que se está a fazer, o trabalho sujo é sempre de
outros. Quem é que defende uma arte orientada, uma orientação cultural
dirigista? Quem a pratica ou praticou de modo político?
A necessidade de um dado patamar organizativo das coisas tem
fundamentalmente a ver com as realidades patrimoniais, incluindo as imateriais,
e com a relação entre tradição e inovação – a candidatura de certa Coimbra a
Património Mundial e o modo como foi feita ainda agora prova isso. É nesse
limiar que se estruma o futuro estimulando-o. Uma organização teatral como um
Centro Dramático (modelo europeu), como um Teatro Nacional Regional Alemão (com
os mesmos objectivos e estrutura), como um Teatro Público Inglês (qualquer que
seja), como um Teatro Holandês (do Serviço Público Estruturado no país), como
um Teatro Belga ou Suíço de língua alemã ou francesa, ou como um Teatro Stabile
Italiano e por aí fora nos países europeus, é uma organização de tipo
paradigmático – é um modo de estruturar o conhecimento patrimonial e de activar
as condições laboratoriais da criação contemporânea. É uma estrutura de
criação, uma “fábrica” sensível , produz objectos artísticos teatrais e por
razões de massa crítica única, aliada a um potencial artesanal, tecnológico e
logísticas várias, é capaz de políticas de acolhimento únicas, e artística e
culturalmente esclarecidas, à margem de tudo o que sejam imposições do mercado
– o mercado em arte existe na pintura sobretudo, também um equivalente do
dinheiro que se tem no banco a render, mas nas outras artes é apenas o ruído
dos que fazem entretenimento e querem ser reconhecidos artistas. Na arte não
existe lei da procura e da oferta. Se existe um desígnio de evolução e
aprofundamento cultural, de crescimento singularizado de cada cidadão como um
sujeito, não se podem entregar os seus direitos de “acesso à criação e fruição
culturais” a um nivelamento por baixo que facilmente reconhecemos, é um
exemplo, nos programas massivos de entretenimento televisivo. No tempo da
cultura de massas globalizada, na sociedade hiper-massiva de controle, há que
fazer o contrário se há um desígnio real de não considerar a cultura um bem
menor e defendendo a ideia de uma política de estímulos. Não faz sentido
defender uma política de estímulos, apoiar tudo o que são fogachos e
instituições que funcionam como a fachada do regime e praticam uma cultura
orientada para fingir uma normalidade democrática inexistente e não ter
desígnio nenhum, nenhuma meta, nenhum horizonte que se assuma em planos
concretos explicitados e escrutináveis para o corpo da sociedade como um todo,
no livro, no cinema, no teatro, no património, nos museus, na relação entre o ensino
artístico e as profissões artísticas, etc. Não vale a pena conhecer o António
Ferreira da Castro, Gil Vicente, Camões, o Chiado, António José da Silva – os
brasileiros dizem que queimámos o seu primeiro dramaturgo – Garret e Pessoa, a
fundo? Não se praticam porque são anacrónicos e os pós modernos neoliberais só
vêm o futuro em auto-imagem, as suas obras cénicas não são vivificáveis e
conhecíveis as outras publicamente porque potencialmente cénicas? Não é
relevante a política de reportórios das pequenas estruturas de criação que nos
dão a conhecer os europeus Tabori, Brecht, Bernhard, Barker, Pasolini, Koltès e
também Strehler, Bergman, Chéreau, Langhoff, Démarcy-Motta que já nos visitaram
pela via de boas mãos? É por não os conhecerem que não lhes reconhecem
relevância? Venha pois a política de estímulos e a política cultural não dirigista,
não desejamos outra. O que não suportamos é este modo de estimular que asfixia e
que mais se parece com a anedota que Heiner Muller contava: a água estava morna
e a rã sentia-se às mil maravilhas na panela, quando deu por isso, estava
cosida. A estratégia aqui não será exactamente essa, mesmo que Passos Coelho
saiba ser cordial? Na realidade, cá por baixo, onde nós estamos e fazemos
cultura, criadores, divulgadores, animadores e outros, as coisas estão a ser
bem mais violentas, mesmo definitivas.
Fernando Mora Ramos - Encenador português
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