domingo, 5 de outubro de 2025

«VEREDICTO» | de Pedro Mexia no semanário Expresso


 Claro que não é inesperado termos uma crónica de Pedro Mexia que nos enche. Esta semana no Expresso mais uma que apetece divulgar. Excerto: «(...) Quando encontro, em mudanças ou arrumações, objectos antigos que comprei ou me ofereceram, relógios, bibelôs, canecas, telemóveis, o tempo passou por eles. Estão amolgados, sujos, rachados, não funcionam. Os objectos duram mais do que a vida humana, embora os objectos tecnológicos sejam vítimas da “obsolescência programada”. A minha obsolescência não foi vagarosa como a das coisas guardadas em gavetas ou caixotes, mas galopante como certas doenças. E, ao que vou sabendo, é igual com outras pessoas da minha geração. Alguém morre inesperadamente, antes de tempo, faz impressão, alguém da nossa idade, e morremos um pouco também quando o morto integrava o teatro da nossa cabeça. Percebemos que nos dedicámos a trabalhos que não interessam a ninguém. Ou que somos maus na nossa vocação. Ou que a família, como se diz das camisolas, está no fio. A nossa auto-imagem como indivíduos decentes cai ao chão e parte-se em bocados. Fazemos mal a quem nos fez bem. Fraqueja a saúde em pessoas que queríamos imortais. Os amigos são numerosos, mas é uma amizade diferente da antiga, lúdica, sem confissões nem cumplicidades. Um médico confessa que estivemos quase, quase. Compramos uma caixinha para os comprimidos, dois, quatro, a seguir seis comprimidos. Temos ilusões, imagine-se, ilusões aos cinquenta. Somos estúpidos, tão estúpidos, toda a gente nos avisou que não fôssemos tão estúpidos. Imaginamos uma empatia imaginária. Mas palavras valem dez tostões. Somos submetidos à boataria, à insinuação, à calúnia, ao escárnio. A intimidade caducou, ninguém guarda segredos, tudo circula entre todos. Sujeitos que conhecemos há décadas mostram-se inimigos. A maior das pragas do Egipto, a mentira, regressa com o seu antiquíssimo arsenal, as ocultações, fabricações, denegações, meias-verdades. Os eufemismos magoam mais que a agressão. Somos comparados, e vexados por comparação. Mostram-nos o nosso valor por omissão, ou omitem, ou declaram que não valemos nada. Um escritor italiano, já não sei quem, lamentou: “A vida é um esforço que merecia melhor causa.”

E, no entanto, não sofremos nenhuma injustiça, porque isto nada tem a ver com a justiça. É o que é. Não uma verdade, mas um veredicto. Não um conforto, mas um desabrigo. O que sei eu a “meio” da idade, que é o último terço, a “meio” do caminho, que é o começo do fim? Que tenho mais certezas do que dúvidas. E que isso é mau. Conheci as respostas às minhas perguntas em seis meses, e nem as descobri, caíram-me em cima como uma abóbada que desaba. Pareço agora um daqueles advogados do cinema que dizem ao juiz, confiantes ou derrotados, “no further questions”, já não tenho mais perguntas».


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