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RESISTÊNCIA
A palavra sempre
contém a eternidade possível. A vida, como sabemos, tem entretanto um tempo
limitado e dizer sempre, até sempre,
para sempre, é explicitar um desejo impossível de superação do tempo que,
contra todas as evidências, não deixamos de afirmar, expressando esse
impossível – que gesto mais revolucionário que esse de tentar materializar o
espectro que nos ronda, e rondará, potencialidade de sociedade comunista sempre, fantasma a converter em
sociedade de carne e osso, sociedade do poder administrador do que é comum
entre iguais diferentes contra a ideia do cada um por si, da esfera do privado
como um horizonte, do lucro do capitalista e da expropriação privada do que é
de todos, sociedade da justiça contra as teias burocrático-legais do jurídico
que regra a desigualdade estruturante?
Permanecer, nesse tempo que nos calhou viver, ligado sempre a uma ideia nova, a ideia
comunista, assinalados necessariamente hoje os seus desaires e monstruosidades
– na Coreia do Norte o exemplo vivo da aberração dinástica, no desprezo do que
seja essa comunidade sem classes por vir – para que o seu valor se reerga como impossibilidade
possível, de novo, e combater por ela em todos os tempos que a história foi
gerando e em todas as frentes, é admirável.
Dizia Brecht que há muitos tipos de homens resistentes, mas
que os imprescindíveis sempre eram
raros por não desistirem, por resistirem sempre.
Eram, por isso mesmo, imprescindíveis. Voltavam sempre ao “motivo do crime”
para nele semearem, insistentemente e sob forma nova no tempo refeita, o seu
modo de ver, a sua visão e isso para além dos limites físicos, como sabemos,
pela história do chamado “segredo”, essa tortura do isolamento total, de uma
separação total do mundo dos vivos, experiência tumular e pela extraordinária
fuga da prisão/forte de Peniche.
Não sou dado a mitificações e o Álvaro Cunhal combatia, como
sabemos, o culto da personalidade e exercitava uma reserva solidária no estilo,
era alguém que se dizia revolucionário profissional e evitava entretenimentos
fabulares em torno da vida pessoal, o que, em boa verdade, espicaçou em muitos
o desejo contrário. Era um homem invulgar, uma figura absoluta de resistência,
de insistência determinada no combate e consistência nas razões e visões desse
combate. Estive perto dele algumas vezes, numa reunião, acerca das
possibilidades do teatro no Alentejo, ali por 75, reunião em que ele anotou num
caderninho escolar o que íamos dizendo acerca dos preconceitos que existiam, na
Lisboa centralista, relativamente ao lançamento de uma actividade artística
numa região deserta de cultura artística. E lembro-me da primeira digressão
alentejana por terras da Reforma Agrária. Um aperto de mão inacreditável de
firmeza e uma mão ampla. Detalhes, mas no detalhe está também um sinal do
conjunto dos comportamentos. E o que mais me seduz, nessa viagem agora em
direcção ao passado com os olhos virados para a frente – e nunca o capitalismo
esteve tão agressivo e radicalizado na sua vocação antidemocrática e
anti-liberdades, anti-humana e anti-comunitária, de 45 para cá, capaz de
sujeitar a humanidade a um apocalipse - é pensar a diversidade das formas dessa
resistência: a tese de licenciatura sobre o aborto, os ensaios sobre a
estética, a tradução do Rei Lear, o livrinho sobre as lutas de classes na idade
média, o interessante “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, a
questão agrária, os magníficos desenhos, etc. Essa diversidade, mantida na sua
coerência interna uma unidade de pensamento aberta à possibilidade de um novo
não pré feito, é algo de facto único. Poucos dirigentes foram assim feitos de
tanto vário e de, nessa multiplicidade de interesses, plasmarem o ser - talvez
Gramsci, estranhamente pouco amado para além de Itália, seja adequado referir
aqui. Essa multiplicidade constitutiva da acção e interesses é um sinal que
muitos deveriam seguir, atentos. A vida não é o caminho estreito de um combate
feito nos carris de uma contrarresposta mecânica, a vida é a multiplicidade das
formas da sua existência e não devemos apequená-la, o combate é múltiplo e
muito mais complexo que a sua redução a uma agenda contraposta da do inimigo. Hoje
é muito óbvio que a resposta taco a taco, no plano da arena mediática, é um
empobrecimento e uma redução do universo da política ao próximo clichê
possível.
Esta é a minha herança de Álvaro Cunhal, uma herança assente
numa multiplicidade também dos contextos da práxis política, desde os tempos do
Socorro Vermelho aos de ministro de Estado sem pasta nos primeiro Governos pós
Abril, mas cuja determinante é justamente a da riqueza da diversidade dos
contributos, com uma grande incidência nas práticas artísticas que, insisto,
não devem ser entendidas como coisa secundária, nem apenas como algo próprio de
alguém excepcional, mas como horizonte prático de todos nesse comum por vir que
se deve gerar todos os dias numa óptica real de mudança.
O que explica o interesse pelo Rei Lear, uma tragédia sobre a problemática da herança – questão
central e ligada à lógica essencial e vital da continuidade do projecto de vida
em simbiose com o projecto ideal- em que, Cordélia, a herdeira mais dedicada, é
posta de lado por lhe faltar o “teatro de afectos” suficiente para enganar o
Rei, como fazem as duas irmãs mais velhas?
Imagino quanto não terá sido difícil, muitas vezes, ver
largo no apertado caminho possível de uma luta de classes conduzida no espaço
restrito da clandestinidade, esse espaço sem liberdade e sem, por assim dizer,
possibilidade de informação abrangente e referencial livres, e gosto de pensar
nessa extraordinária forma de resistência que é a escrita, o estudo e até um
invulgar trabalho de tradução de Shakespeare num universo prisional. É de facto
uma capacidade limite e uma atenção à especificidade do que é a arte como
característica essencial do humano.
Álvaro Cunhal terá dito a Petrova, filha de um dirigente
soviético, acerca da experiência prisional: “Isolado, separado dos seus
camaradas, o homem não sabe se conseguirá ainda alguma vez na vida sair à rua,
sentar-se num banco, recostar a cabeça, olhar o céu enorme.” Nada mais claro
que esta confissão de fragilidade, só um grande resistente a faria.