Publicado no jornal Público de 30 de agosto de 2013.
Cinemateca,
património e criação
A paralisia iminente da Cinemateca, agora revelada mas há
muito conhecido, é um problema comum às áreas artísticas como resultado da
aplicação de uma política apenas de cortes e orçamental que, na cultura, tem
sido e é destrutiva. Há outras formas de fazer política cultural, uma nova
fiscalidade específica, um novo mecenato, uma clara definição do que é o
Serviço Público e suas articulações programáticas com as entidades de criação
sem fins lucrativos, um programa vasto de reforma do sector público que não
apenas a de um falso controlo da despesa - sempre que na gestão destas coisas inventam
a pólvora concentrando administrações, gastam mais com medidas que só complicam
(despesismo) o que funcionava simples e coerente.
Não existe política cultural porque não existe Ministério. Essa
inexistência é, em si, a política – o mais ridículo é não existir Secretaria de
Estado, havendo um Secretário de Estado junto ao Primeiro-Ministro (sem acesso
ao Conselho) sinal que se exibe como uma distinção operativa mas que não é mais
que um adorno. Assim como se criou o Ministério, e chegou mesmo a existir
porque tinha um programa, assim se destruiu, transformando-se o que foi
identificado como áreas de responsabilidade, programa, em gestão diária e
casuística do que emerge como problemático: um dia o Comendador Berardo, outro
dia a Cinemateca, num outro, o Museu dos Coches, todos os dias o património em
estado de abandono, anualmente as capitais europeias a descapitalizarem no dia
seguinte ao do prazo oficial de vida, e de modo mais invisível, a vida cultural
e artística dos interiores: as pequenas estruturas de criação, teatros e
museus, festivais e programações regulares não comerciais que transformavam o
pouco que recebiam no muito que davam a conhecer e fruir, criando vida onde o
Estado só desertifica, sufocam.
O projecto deste governo começou pela subalternização das
disciplinas culturais e artísticas enquanto componentes estruturantes da
democracia – uma invenção saída das cinzas no pós-guerra - na medida em que a
inexistência do Ministério significa não só o desprezo pela cultura como
qualificação da democracia, mas também pelo seu papel económico – contra as
evidências estatísticas recentes que, aliás, são apenas enfeite de situações
mundano-políticas. Considera-se que as actividades artísticas, numa leitura
mecânica, são anti mercado, isto é, despesa não lucrativa, a famosa
subsidiodependência – é o que chamam ao Teatro Aberto, à Cornucópia, à Paula
Rego e à sua Casa das Histórias (Fundação), ao projecto violentado de Maria
João Pires em Belgais (o problema já era este e por isso refiro-o), e a tudo o
que não seja lucro imediato (de cortar a torto e a direito) ou especulação
financeira potencial (o jogo viciante dos capitais de risco ou os negócios na
esfera público-privada), à excepção, não comprovada por uma política
consequente mas com estatuto no discurso “responsável”, do património que,
aliás, há que valorizar - que tombo sem a Torre do Tombo, e que seria se a
outra torre, em Belém, fosse a discoteca ou o restaurante falados, assim à
Berlusconi, esse farol quase lusitano?
A recolocação da colecção Berardo como problema mostra a
predilecção pelo elefante branco (desde o princípio que deveria ter tido sede
própria e autonomia, reconhecido o interesse do Estado no mérito público da
colecção) e só vem comprovar que tudo o que se faz se desfaz e que o fazer do
que levou anos a construir (estruturante da democracia, como é o caso da
Cinemateca e do trabalho notável de João Benard da Costa), não tem, para este poder,
nenhum valor: a sua democracia coincide com o desaparecimento do Estado
democrático, a sua redução a funções repressivas e a facilitação do exercício
de um poder absoluto pelos mercados sem controlo legal (a ideia do Estado
empresa é isso mesmo). Como disse um Ministro há pouco, o Estado quer
desamparar a loja. A loja é toda para o homem de novo tipo, o empreendedor, o empresário
de visão, o investidor, o criador de produtos transacionáveis... Para o Estado
fica a actividade não lucrativa, assim se controla a dívida, aliás o Estado não
necessita de redistribuir a riqueza comum, os privados, é sabido, fazem isso
melhor...
Ao longo dos anos o Estado, mal governado pelos então já poderosos
gestores (o Dr. Cavaco é o exemplo acabado, o “país de doutores” foi-se com o
papel selado) parece vocacionado para possuir uma infindável colecção de elefantes
brancos (não estão em vias de extinção) e de cada vez que faz uma obra (CCB,
Museu dos Coches agora, e tantos exemplos no interior do país) não acautela que
à obra corresponda um programa – em Portugal a decisão começa na obra, depois
inventa-se o programa, o que faz com que grandes logísticas iniciem a sua
“morte física” (morrem do que são) no dia seguinte às inaugurações, na medida
em que não há modos úteis de as habitar, vida própria como programa. Os
exemplos abundam e a dança dos edifícios não é muito distinta da que gerou autoestradas
(de programa fácil e falhado) em que viajamos solitariamente, ou da dos estádios
de futebol… – imaginam a Igreja a multiplicar Santuários de Fátima?
O que resta da administração pública da cultura tem como função
tirar o Estado das suas responsabilidades culturais democráticas, sejam
patrimoniais, sejam nos domínios da criação – uma das invenções do pós-guerra foi
a inclusão da cultura e dos patrimónios nas funções programáticas do Estado democrático
como resposta à barbárie nazi. A memória de um país, seja a pedra, sejam
imagens, pintura, escultura ou cinema, teatro e as criações artísticas
contemporâneas, não é uma questão do Estado se o governo não concebe a cultura
como um programa político na medida das consignas constitucionais do acesso à
criação e fruição culturais. Mas não o fazer é, desde logo, desqualificar a
democracia, impedindo as maiorias (e minorias) de aceder a formas de liberdade
pública que as linguagens das artes são enquanto conteúdos da liberdade
artística e da própria liberdade, o que só poderá acontecer com o
reconhecimento íntegro da cidadania artística. A desqualificação da democracia
e o seu empobrecimento é o desígnio de uma política que destrói o fenómeno
cultural, identificada tão só com a redução da despesa pública. Para as “elites
novo-ricas” e para os velhos ricos de sempre, trata-se de garantirem a operacionalidade
do sistema que estrutura a desigualdade, agora mais funda, protegendo os seus
interesses contra o interesse de todos e os direitos universais. O orçamento,
um qualquer, é estruturante da economia, a economia será, ou não, estruturante
da democracia. Democracia é uma palavra prostituída, tão usado é pelos seus
inimigos. Ao que parece economia, por via de um culto que a celebra como um
totem verbal, não. É o tabu que faz o totem pela repetição – “é a economia,
estúpido”, diz-se e a realidade submetesse-lhe, como se a economia fosse um
projecto inevitavelmente antidemocrático: é o caso da austeridade, esse modo de
concentração da riqueza nos especuladores e da redistribuição da miséria, no
lugar da riqueza, através do desaparecimento das funções democráticas do estado,
pela maioria da população».
fernando mora ramos