domingo, 14 de agosto de 2011

CAPITAL EUROPEIA DA CULTURA


Capital europeia da cultura
Com a Europa a desandar o que será realizar uma Capital Europeia? Fica a estranha sensação de que se de um lado a crise estala e tudo pára aterrado, e reflui conscientemente por tomadas de posição ou falta delas, do outro as rotinas são imparáveis alimentando a Europa de ficção que não virá. No caso e depois de notícias sucessivas – as únicas – sobre as bagunças da iniciativa, centrada em secundaríssimas questões, salários luxuosos e acusações de desligamento da cidade que é seu objecto e supomos nós, também sujeito de projecto, as coisas marcham de novo para um resultado que, com nada esclarecido mais do que um fait divers de uma senhora e do seu alegado mau feitio, não se desenha significativamente nem Europeu nem cultural. O nível de entendimentos corporativos e de protagonismos salariais e outros, mesmo eventualmente artísticos – e que será isso no meio de tanta “indústria criativa”, chavão de êxito mediático pré garantido -, geridos à boa maneira confusa nacional e local, com o ex Presidente Sampaio a ir a reuniões assim a modos de Pedagogo e Padrinho, só mostram que o que está por vir é, culturalmente, irrelevante e que o que não se vê, e se mexe, é certamente negocial, assuntos de verba à vista e de verba menos visível – o nível de detalhe com que se falou do que a senhora iria receber de indemnização brada aos céus e cheirou de tal maneira a coisa montada que mostra como quem manobra julga os outros estúpidos. E a senhora foi bode expiatório, número de futebol conhecido como chicotada psicológica e que consiste em pôr o treinador na rua.
Nestas coisas mandam empresas, grupos económicos – foi assim na Porto 2001 – e poderes locais num grau de equilíbrio que faz tender as coisas para um quadro de decisão que, consensual, não leva a nenhuma mudança, antes sim a contentar facções e interesses instalados – em O Futuro e os seus inimigos, Daniel Innerarity fala-nos bem da irrelevância do tipo de decisão apelidada de incrementalista - mudar para um acentuar do mesmo que estava antes da anunciada mudança -, e também de um outro tipo de decisão assente numa “certa racionalidade da improvisação ou de atitudes como as da espera por melhor oportunidade.” E acrescenta: “ A improvisação é um tipo de comportamento que avança sem planos, sem cálculos, sem determinação de objectivos e selecção de meios, sem a ponderação das eventuais consequências secundárias. O que caracteriza esta forma de decisão é que para os actores do que se trata é apenas de manter-se no jogo, coisa em que muitas vezes consiste o combate político – embora os seus representantes declarem e encenem decisões soberanas.”
Há muito que o projecto devia ter anunciado publicamente os seus grandes objectivos estruturantes – que Capital será o futuro e de que Europa se trata? – e ter posto do seu lado não a cidade, mas o país e certamente a tal Europa de que será uma capital mesmo que efémera. Do efémero nasce o mais permanente - assim é o teatro grego até hoje - o mais sustentável e aqui, entre nós, certamente que uma capital terá como objectivo central a criação de condições de sustentabilidade de uma vida nova, europeia, face à vida velha, não europeia e essa vida será cultural não como oferta, isso é apenas uma questão de compra, mas como criação capaz de se expandir em estruturações novas, o que é da ordem da mudança do mundo, da invenção. Todos os seres pensantes, incluindo os chamados opinian makers – pagos para para formar opinião ao serviço de objectivos ideológicos mais do que fazer pensar – afirmam que a Europa é uma mistificação, não basta a união monetária e a burocracia de Bruxelas mais o Parlamento, centros de interesses hegemonizados pela Alemanha e por uns arremedos de importância franceses. Isso não faz a Europa, essas organizações representam um nível de compromisso histórico hegemonizado pelo poder real da Alemanha que, no momento, age segundo interesses nacionais, a começar pelos interesses dos seus bancos. A Europa patina, bloqueou. O que a crise pôs à vista é: não há Europa sem um nível político de integração aprofundado, orgânica europeia de governo aprofundada, para não falar de um nível cultural de integração que suponha fenómenos institucionais e mesmo orgânicas de criação cultural europeias, um “multiculturalismo” também específico entre as identidades europeias envolvidas no projecto europeu, a começar pelas matrizes.
Enfim, umas animações haverá, uns repuxos encaracolados de luz a três D e outras manobras com muita tecnologia circense mais logótipos em barda, efervescências de espumas e anúncios em catadupa em jornais lisboetas e nos suplementos do costume. Não duvidem. Como diz David Lescot – dramaturgo francês de origem polaca, vivíssimo – sobre estas coisas de capitais em A Europeia (publicada na colecção dos Artistas Unidos/Cotovia, tradução de Isabel Lopes) pela boca do performer português Quim Calisto, participante de uma capital europeia: “Primeiro tocam a reunir: Capital europeia da cultura, capital europeia da cultura, isso chama os esfomeados locais […] Mas quando se trata de chegar a uma conclusão, quando começam as festividades […] ficam só com um…”
O problema aqui é tão absurdo que é como manter um oásis de espelhos virados uns para os outros no meio de um sismo que se generaliza. O que deverá ser uma capital europeia sem Europa e pensada do lugar da crise? Vamos continuar a fingir que não se passa nada, como na anedota do período Brejnev em que, fechando as cortinas do comboio, todos se abanavam para fingir que estavam em movimento? Já chegámos a esse ponto becketteano?


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