Artigo publicado ontem no jornal Público e que queremos partilhar aqui.
O novo PREC
É ao que assistimos, uma catadupa de medidas empurrada por um falso horizonte. A fugir da dívida caminhamos para o abismo. E as medidas sucedem-se: aumentos impensados nos transportes a fazer o frete ao uso e abuso do carro privado, meio subsídio de natal calculado não a partir do subsídio de natal – há muita gente que não o tem, nem de natal, nem de férias –, mas a partir dos valores do IRS declarado dividido por catorze, duzentas e trinta nomeações com dupla transparência a multiplicar a transparência por dois (Internet e Diário da República) no espaço de um mês – excelente média e despesa, imagina-se -, liberalização do uso da gravata no MA, um Secretário de Estado sem assento no Conselho de Ministros, o da cultura, orçamentos rectificativos pré anunciados ao serviço das necessidades de crédito do sistema banqueiro, avaliação dos professores a manter-se para já, TGV para as urtigas, frente ribeirinha lisboeta logo se verá, e mais uma série de medidas na lógica do corte – nem todas péssimas claro, só está em causa é o seu recorte -, com o assunto das secretas a dar o toque República das Bananas, pois não nos podemos esquecer desse luxo de condição cómica que é ser periférico e há que praticá-lo lançando tragédias de irrelevância nas ondas de choque do real de modo a que este se note menos.
E convenhamos que há um real que está indexado, por assim dizer, ao balanço dos transportes públicos e um outro que se anuncia no ranking das 10 maiores fortunas portuguesas, com a cortiça a vir mais que ao de cima, a voar mesmo. É interessante conhecer este sistema de vasos comunicantes perfeito: o menos que tu tens é o mais que outro acumula e se apertas o cinto, tu e uns milhões, outros multiplicam os patrimónios e as rendas e o muito A mais que têm - não há aqui regulação alguma segundo lógicas de necessidade vindas de um centro de racionalidade humano e técnico chamado governo, nem princípios de solidariedade institucional, nem nada que o explique que não seja a força bruta do dinheiro a agir através dos seus mandantes e dos seus mandados. E nestas fortunas, lucros acumulados em espiral ilimitada, e não o tal dinheiro que regressaria à economia investido – o sentido de lucro não é esse – não se divisa a mínima crise, pelo contrário, a crise é o melhor que lhes pode suceder, comem do acrescento de miséria dos outros e comem dos lucros da especulação, comem por duas vias: pela austeridade que é mais capital para eles e dos capitais em bolsa, riscos geridos e protecção mais que acautelada contra estes, pois também mandam nos riscos.
É um novo PREC, o Processo de Regressão Em Curso, pois este grau de “austeritarismo” é de facto absolutamente radical na sua cegueira e não mede nem as necessidades de alargar as sopas dos pobres ao número do seu aumento exponencial. O que sentirá um democrata cristão? Não fundamentalista, claro. Sentirá pena, compaixão, rezará pelos desempregados que agora lança na miséria? Quantos Pais Nosso? O Senhor tem um plural minguado! Quantos céus necessitarão invocar perante tanta dor evitável?
Em boa verdade o capitalismo puro e duro que aí está não vai resolver nada, nem a crise, nem as mentiras da crise e são múltiplas e engordam os porcos – era assim que os desenhava Grosz.
Pois a crise não é a da dívida. Questões de dinheiro sabemos nós que se resolvem – há várias provas históricas de saídas de crises bem mais complicadas, esta tem interesses próprios, por assim dizer -, o que não se resolve é a sua distribuição errada, o enriquecimento ilícito de uma minoria que fabrica as suas próprias leis, sistemicamente instalada como proprietária do modelo de organização sócio económico, regime parlamentar representativo da liberdade específica de agir dos poderes financeiros dominantes, o reverso oculto da democracia, aquele que contra ela milita – entre o mercado e a democracia há interesses opostos: um visa a acumulação de lucros intransparente na mão de um menor número de competidores que vencem, a outra visa a igualdade de direitos, a transparência, a distribuição equilibrada dos meios de vida, a generalização da cultura artística e científica, finalidades humanas através da fruição quotidiana na cidade daquilo que são os ricos patrimónios vivenciáveis da cultura ocidental, desde a diversidade do legado grego aos avanços da tecnologia, isto sem endeusamentos burros (o que é tecnológico será sempre submetido a usos e não virtuoso em si como sonhará um tecnocrata cego pelos ecrãs).
O problema é a nova religião, o dogma, indiscutível, a dívida nova fé, um caminho a seguir cegamente na sua resolução: “eles é que sabem”, diz o analfabeto financeiro, nós, pensando nos tais economistas e gestores que finalmente a criaram, á dívida, com um carinho pseudo-científico – afinal são tudo narrativas e o futuro é uma incógnita. Sabem o quê? O dogma da economia do crédito mata a democracia. A “creditarização” da economia é em si uma velha fórmula e pela taxa alta matou a sua utilidade, transformando-a num garrote. Os usurários que habitavam no Século XVIII nas imediações da Ponte do Rialto já tiravam partido de uma aplicação extremista da usura para fazer crescer os patrimónios respectivos sem limite, principalmente o fundiário. Em Os Rústicos, do grande Goldoni, já um deles confessa: “quando me perguntavam se queria ver o mundo através da luneta ou amealhar as duas moedas eu preferia guardá-las”. Pois é, como dirá um imbecil, eram mais espertos e isso é o mérito. Falta saber onde é a vida. Há sempre, pelo menos, duas perspectivas antagónicas e depois há todas as outras.
Fernando Mora Ramos
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