quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

CULTURA BEM MENOR


Saiu hoje no Jornal Público.

Cultura bem menor
Chega de atirar areia para os olhos de todos. Quando se diz que a cultura não é um bem menor e que uma política de apoio à cultura é uma política de estímulos, não se pode ao mesmo tempo, assumindo que se está a fazê-lo indirectamente, dizer que a expressão orçamental desse apoio não é significativa, que é apenas menos, quando na realidade é parte da asfixia de um sector que iniciativas como Guimarães não altera – não é por fazer um sol de felicidade instituída na eira, minúscula eira em termos nacionais, que também faz sol no nabal que entretanto deixou de se regar. Uma política de estímulos avulsa foi o que sempre houve e de forma sempre desconexa, descoordenada e sem visão de país, exceptuando-se o período conhecido e reconhecido de Manuel Carrilho/Rui Nery. Um Ministro da Cultura, e é o que Pedro Passos Coelho é porque o seu gabinete é o Ministério que não existe e porque é o único representante da área no conselho de ministros, não pode dizer que os 0,2% - já foi 0,7% - do orçamento para a cultura não são significativos quando, como ministro, deveria expressar uma visão que fosse mais que declarações genéricas de boas intenções, por um lado, portanto um plano concreto e por outro lado dizer que a famosa dívida ficar nos 4% é mais que tudo. Esta demagogia da manipulação dos números nunca foi tão alquímica para efeitos de mascarar a realidade da cada vez que se fazem declarações nacionais. Um corte de 38% nas subvenções das estruturas de criação, subvenções que são estímulos e que estão longe de permitir, por razões estruturais, que se pratiquem os modelos organizativos europeus, é o contrário de um estímulo, é um acto de asfixia deliberado. Estas estruturas de que falo são um resultado da democracia, um resultado autónomo e não orientado, criado por aqueles que pegaram nos destinos da cultura do e no país com as próprias mãos, são a expressão mesmo que precária de uma componente da sociedade civil que se dedica às artes com um desígnio de serviço público assumido e sempre praticado do 25 de Abril para cá. Entre nós, por desconhecimento e incultura específica, nunca se organizaram sob a forma de uma política os estímulos de modo duradouro e entrosado, com continuidade de processos e capacidade de renovação inscrita. E o que é que agora se está a fazer? Uma espécie de policiamento pela exclusão e asfixia, um verdadeiro golpismo no justo momento em que se acusam os outros de desejar uma “arte orientada”, o que é claramente gato escondido com rabo de fora pois é inventar uma culpa antidemocrática a terceiros que não tem existência real – é antiga esta táctica de remeter para um bode expiatório fantasmado culpas próprias e lavar as mãos do que se está a fazer, o trabalho sujo é sempre de outros. Quem é que defende uma arte orientada, uma orientação cultural dirigista? Quem a pratica ou praticou de modo político?
A necessidade de um dado patamar organizativo das coisas tem fundamentalmente a ver com as realidades patrimoniais, incluindo as imateriais, e com a relação entre tradição e inovação – a candidatura de certa Coimbra a Património Mundial e o modo como foi feita ainda agora prova isso. É nesse limiar que se estruma o futuro estimulando-o. Uma organização teatral como um Centro Dramático (modelo europeu), como um Teatro Nacional Regional Alemão (com os mesmos objectivos e estrutura), como um Teatro Público Inglês (qualquer que seja), como um Teatro Holandês (do Serviço Público Estruturado no país), como um Teatro Belga ou Suíço de língua alemã ou francesa, ou como um Teatro Stabile Italiano e por aí fora nos países europeus, é uma organização de tipo paradigmático – é um modo de estruturar o conhecimento patrimonial e de activar as condições laboratoriais da criação contemporânea. É uma estrutura de criação, uma “fábrica” sensível , produz objectos artísticos teatrais e por razões de massa crítica única, aliada a um potencial artesanal, tecnológico e logísticas várias, é capaz de políticas de acolhimento únicas, e artística e culturalmente esclarecidas, à margem de tudo o que sejam imposições do mercado – o mercado em arte existe na pintura sobretudo, também um equivalente do dinheiro que se tem no banco a render, mas nas outras artes é apenas o ruído dos que fazem entretenimento e querem ser reconhecidos artistas. Na arte não existe lei da procura e da oferta. Se existe um desígnio de evolução e aprofundamento cultural, de crescimento singularizado de cada cidadão como um sujeito, não se podem entregar os seus direitos de “acesso à criação e fruição culturais” a um nivelamento por baixo que facilmente reconhecemos, é um exemplo, nos programas massivos de entretenimento televisivo. No tempo da cultura de massas globalizada, na sociedade hiper-massiva de controle, há que fazer o contrário se há um desígnio real de não considerar a cultura um bem menor e defendendo a ideia de uma política de estímulos. Não faz sentido defender uma política de estímulos, apoiar tudo o que são fogachos e instituições que funcionam como a fachada do regime e praticam uma cultura orientada para fingir uma normalidade democrática inexistente e não ter desígnio nenhum, nenhuma meta, nenhum horizonte que se assuma em planos concretos explicitados e escrutináveis para o corpo da sociedade como um todo, no livro, no cinema, no teatro, no património, nos museus, na relação entre o ensino artístico e as profissões artísticas, etc. Não vale a pena conhecer o António Ferreira da Castro, Gil Vicente, Camões, o Chiado, António José da Silva – os brasileiros dizem que queimámos o seu primeiro dramaturgo – Garret e Pessoa, a fundo? Não se praticam porque são anacrónicos e os pós modernos neoliberais só vêm o futuro em auto-imagem, as suas obras cénicas não são vivificáveis e conhecíveis as outras publicamente porque potencialmente cénicas? Não é relevante a política de reportórios das pequenas estruturas de criação que nos dão a conhecer os europeus Tabori, Brecht, Bernhard, Barker, Pasolini, Koltès e também Strehler, Bergman, Chéreau, Langhoff, Démarcy-Motta que já nos visitaram pela via de boas mãos? É por não os conhecerem que não lhes reconhecem relevância? Venha pois a política de estímulos e a política cultural não dirigista, não desejamos outra. O que não suportamos é este modo de estimular que asfixia e que mais se parece com a anedota que Heiner Muller contava: a água estava morna e a rã sentia-se às mil maravilhas na panela, quando deu por isso, estava cosida. A estratégia aqui não será exactamente essa, mesmo que Passos Coelho saiba ser cordial? Na realidade, cá por baixo, onde nós estamos e fazemos cultura, criadores, divulgadores, animadores e outros, as coisas estão a ser bem mais violentas, mesmo definitivas.

Fernando Mora Ramos - Encenador português 

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