Publico - 18 junho 2013
Camões, a
possibilidade impossível
Fui ver o António Fonseca a dizer Os Lusíadas, melhor, fui ouvi-lo. Aliás, acabei por ouvê-lo como
quem vê no cinema mental daquele que diz o poema, as frases imagens que surgem
nos modos vários, performativos e rítmicos, de serem ditas, por vezes em
aceleradas vertigens de belicosos feitos, filme logo visibilizado, por vezes
puro verbo, ouvido apenas como imagem do próprio som que é coado, dito de modo
pausado, lento, palavras surgidas como que na bonança de um momento doce ou
alegre a efabular tranquilo, depois de outro e antes de outro, que logo surge
precipitado de novo, tal como na vida acontece pela contradição sempre presente
que a move, entre a violência do enfrentamento entre interesses antagónicos e a
pausa sublime do verdadeiro encontro, amoroso ou ideal, fundador de gestas
solidárias e comuns, prazeres maiores, tão maiores que valem a existência.
É uma impossibilidade, uma utopia concretizada dizer os
cantos, ou ouvi-los de modo integral, colhendo todas as palavras escritas e
ditas, e isso fez-me correr ao Teatro Municipal de São Luís, com o Tejo ali por
perto a lembrar-nos sempre o porto de partida e de chegada. Corri, pelo
virtuoso feito do António com as palavras de Luís de Camões, mas também pela
dimensão do poema que é maior do que possamos ser e somos, já que estaremos
aquém do que é, e nele se diz, mas sabendo que nele mergulhando poderemos
sempre ganhar novas forças que, mais que nunca, nos fazem falta, neste momento
de absoluta miséria nacional, humilhados por um poder imperialista, sem lei e infinitamente
maior, que uma burocracia menor e serviçal torna lei imposta e violenta imposição
real.
Em que outra situação poderia assim mergulhar na primeira
tentativa de balanço integral da minha atribulada identidade, fabulosa, mitologizada
e mitificada, variada, múltipla de geografias, plena de músicas e traiçoeiras
faltas de vento, de tramóias e alianças, de rimas e de danças, balanço primeiro
e incomparável? É um retrato único dessa nossa primeira metade de existência. Do
poema para cá a vida tem sido menos plena para esse sujeito colectivo que fomos
sendo, agora chegados sabe-se lá onde, a um aparente fim de estrada, guiados
por um bando de irresponsáveis que já todos – uma esmagadora maioria nada
silenciosa – queremos ver pelas costas.
O desafio do actor corresponde ao ilimitado imaginário dado
a conhecer, e feito, que foi a concretização do poema. O gesto do actor é em si
um extraordinário acto de resistência e afirmação do que não tem moda possível,
a língua assim trabalhada, esse parente pobre de todas as diplomacias
económicas, inventadas por um tipo de gente que chegou ao ponto de comparar Pessoa
a petróleo – a língua não tem um valor próprio, só atrelada ao específico
económico galga um direito de cidade na cabeça destes tecnocratas de ocasião.
Dizer aqueles cantos é certamente obra mais complexa e
fisicamente mais dura que escalar um Everest que possamos comparar ao Everest e
no entanto fui com a convicção de que a integridade do poema nos era devolvida
como foi escrito e como jamais terá sido ouvido – Camões certamente ao escrevê-lo
o foi ouvindo, já que o poema tem muitas teatralidades inscritas, sob a forma
de figuras e personagens, mas também sob forma rítmica e, por assim dizer, captadora
de situações meio reais meio efabuladas – a dimensão fantástica, mitológica é,
de facto, de um realismo por vezes mais cruel que a realidade, um fantástico
realismo irreal.
E quanto tempo para os poder dizer compreendidos e dados a
ouvir, ver e entender, quanto tempo levou o actor a escrever na sua cabeça o
que diz? É de facto um grande feito e a mais bela comemoração que alguma vez
pude fruir num 10 de Junho. Estás de parabéns, António.
Saber entretanto que este trabalho enorme foi pela DGArtes rejeitado num concurso pontual - pontual, vejam bem - pois não corresponderia aos objectivos da internacionalização lá metida num parâmetro de avaliação que não vai mais longe do que pode a cabeça, viciada em dívida, de quem o pariu, é revoltante. Então, a circulação deste trabalho no Brasil e pelos países de língua oficial portuguesa, ou mesmo nas Europas latinas, não tem a ver com a internacionalização da cultura portuguesa? Então a nossa internacionalização é ir falar inglês para Israel, ou fazer uma performativíssima pantomima de manguitos envolvidos em crochet, ou coisa no género? De facto lá onde está a caravela e a nau, já só vêem o cacilheiro.
Alegrou-me entretanto o facto de saber que em Elvas o povo
se portou à altura.
Fernando Mora Ramos
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