Um excerto:
«1. Num ensaio de 2009, falava da «superação da insignificância» como desígnio político necessário para superar a «condição orgânica precária da nossa estrutura teatral». Como vê a situação do teatro hoje?
Está tudo pior e o teatro não é uma ilha. Mesmo que o estejam a isolar, a meter no beco porque tem o vício da crítica no corpo, o teatro pressupõe sempre uma dimensão social e uma dada condição estatuída na esfera da sociedade democrática. Necessitando de regras próprias de existência, vive muito mal numa sociedade em que o ar das ideias não circule, como agora, que sobrevive mas não se expande, através de formas rudimentares de subsistência, subfinanciado, expressivas, vivendo um pouco para dentro de si mesmo, em modelos alternativos e frágeis de produção e exploração, que tocam minorias menos amplas que a imensa minoria que o teatro pode tocar. O facto, entretanto, de que há hoje muitos mais praticantes de teatro, ao mesmo tempo que há menos espectadores, não deixa de ser um sinal de futuro, mesmo que, para já, esses praticantes não tenham condições de fazer dignas de um exercício profissional.
Em 2000 estávamos no milhão de espectadores, dados oficiais, um número inacreditável para o tipo de apoios que se materializavam, muito abaixo dos padrões europeus – mesmo assim as coisas explodiram, espalharam-se por todos os lados, mas um pouco sem regra, mexilhão a alapar-se onde pudesse agarrar-se e não a estruturação de um esqueleto de novas dinâmicas. O mais longe que se foi materializou-se nos Centros de Artes do Espectáculo [CAE], projecto que desapareceu no curso da sua própria afirmação pelo desinvestimento que veio a seguir à criação dos projectos.
Este é um momento de sobrevivência resistente e de acção, de protesto claro contra o absoluto desprezo do poder pelo que não tem natureza lucrativa nem tem que ter.
Mesmo que a fragilidade do teatro seja a sua natureza, o corpo imperfeito que fala e age com terceiros diante de outros, os espectadores, que realizam também o seu teatro de reacções sensíveis, discreto ou nem tanto, em assembleia de singulares, dir-se-ia, a-espectacular, esse ser fala em acção corporal no presente da representação exige meios de afirmação complexos e dispendiosos, não luxuosos, mas múltiplos, próprios das artes que integram o teatro, multiplicidades singularizadas que são específicas em cada poética, em cada artista e projecto – Peter Brook é um caso, Kantor foi outro, Strehler outro, Cintra outro, Howard Barker outro, sendo que muito teatro se realiza como memória propulsora, num diálogo permanente com a história e com os futuros e sua negação, os regressos trágicos – o teatro estará sempre em desacordo com o real porque a realidade nunca será perfeita, a sua presença é sempre crítica.
Se pensarmos que o teatro conjuga desde as origens características que unem uma arquitectura específica, da cena grega, passando pela construção à italiana e pela actual “caixa de sapatos”, a uma tradição dramática, de Ésquilo a Crimp, por exemplo, e a modos de ensino dos trabalhos do corpo que encontram no estúdio de Stanislavski a sua fundação já contemporânea, profissional – daí para cá muita coisa aconteceu em matéria das práticas de actor e de uma ideia concreta de profissão – e que a disciplina encenação fez, na contemporaneidade, uma nova síntese de um conjunto de práticas que se exerciam conjuntamente por soma, lançando novas bases para o exercício unitário das artes que o integram em que a iluminação e recentemente a electrónica aplicada às técnicas, ganharam uma nova dimensão, perceberemos que clamar por teatro na Europa – e o que é isso da Europa, neste agora? – é reivindicar algo tão complexo como o direito à saúde, com todas as suas implicações, o que projecta iniludivelmente a necessidade de uma política teatral, conjunto articulado de medidas a montante e a jusante dos seus modos de fazer.
O teatro necessita de um SNT que alimente a sua potência crítica, é esse o seu destino na sociedade, revelá-la, expor o interdito, dizer o não dito, fermentar uma constante luta de ideias e de pensamento, ser o lugar do exercício dessa dimensão sensível que o cidadão tem direito a reconhecer em si mesmo como algo mais que uma impressão, um acidente, um acaso, uma promessa. Todo o ser tem potencialidades criativas. A cidade, sendo cidade, não produz o consumidor, a cidade é o espaço de afirmação do cidadão. O mercado sim, a sociedade hipermassiva de controlo sim, produz o consumidor, a criatura formatada, essa criatura que vive a publicidade como uma religião e a vida como actos negociais, o dia-a-dia como uma contabilidade.
O que agora acontece é que o Estado que do 25 de Abril para cá foi estando progressivamente consciente que o seu papel na cultura artística era o de criar condições de fazer, apoiar e estimular a criação, a edificação de estruturas que fossem projectos artísticos e equipas de um corpo global, territorial e de saberes, se demite progressivamente de qualquer papel. Sinal claro disso é o desaparecimento do próprio Ministério da Cultura. (...)».
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