Olá.
O Tiago Gillot, dos Precários Inflexíveis, bem nos tinha
avisado: “O pior é a ressaca.” Na altura, confesso, não tinha entendido
bem o alcance das suas palavras. Estávamos no estertor do segundo governo
Sócrates. Pacotes de austeridade atrás de pacotes de austeridade;
números de desemprego a superarem-se mês após mês; e a juventude a
ver a sua vida a andar para trás, sem trabalho, num limbo. Aos poucos, um
grupo de amigos foi ganhando consciência da sua situação de fragilidade. O
dinheiro sempre a escassear, a dificuldade em pagar a casa, a falta de
segurança laboral, os sonhos sempre adiados, o estrangeiro como única saída.
O ar dos tempos era pesado, mas fez-se palavra cantada em canção de acordes leves e voz suave: Sou da geração sem
remuneração
E nem me incomoda esta
condição
Que parva que eu sou
Porque isto está mal e vai
continuar
Já é uma sorte eu poder
estagiar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo
É preciso estudar
Sou da geração casinha dos
pais
Se já tenho tudo, p'ra quê
querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou
sempre a adiar
E ainda me falta o carro
pagar
Que parva que eu
sou [...]
Era preciso mais.
Sair à rua, ocupar o espaço público, gritar, pular, dizer “inevitável é a tua tia”. O dia chegou: 12
de março de 2011. Milhares e milhares de pessoas, em dezenas de cidades em
Portugal e no estrangeiro, saíram à rua no protesto da Geração à Rasca, as maiores
manifestações não organizadas por partidos políticos ou sindicatos desde o 25
de Abril até essa data.
O manifesto era claro: “Nós, desempregados,
‘quinhentoseuristas’ e outros mal remunerados, escravos disfarçados,
subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes,
trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros,
trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal. Nós,
que até agora compactuámos com esta condição, estamos aqui, hoje, para dar o
nosso contributo no sentido de desencadear uma mudança qualitativa do país.
Estamos aqui, hoje, porque não podemos continuar a aceitar a situação
precária para a qual fomos arrastados. Estamos aqui, hoje, porque nos
esforçamos diariamente para merecer um futuro digno, com estabilidade e
segurança em todas as áreas da nossa vida.”
Foi avassalador. Nem eu nem nenhuma das pessoas e organizações que
ajudaram a organizar a “Geração à Rasca” alguma vez imagináramos tamanha
loucura. Não eram só jovens ou só licenciados ou só gente das grandes
cidades. Era povo de toda a parte, das mais diversas áreas profissionais, com
as mais variadas formações. Novos e velhos; netos e avós; pais e filhos. Um
mar de gente. Formigas num carreiro que só queriam mudar de rumo. Este
sábado, faz 11 anos. E, como me dizia o Tiago nessa altura, o pior é a
ressaca. É aí que ainda sinto que estamos. Na ressaca de um dia histórico em
que o país veio reclamar o fim da precariedade, segurança laboral, condições
de vida. Uma década depois, o mundo do trabalho continua sem avanços
significativos na conquista de direitos. Pelo contrário. As medidas de austeridade da troika
e do governo PSD/CDS diminuíram o valor do trabalho/hora, tiraram dias de
férias e reduziram as indemnizações por despedimento. E, mesmo durante a
geringonça, foi sempre no tópico “trabalho” que as coisas azedaram entre o PS e os partidos da
Esquerda.
É verdade que se aprovou no parlamento uma versão – bem menos ambiciosa que a
proposta original – da Lei Contra a Precariedade. É verdade que o
Estado criou um “programa de regularização extraordinária dos vínculos
precários na Administração Pública” — que é como quem diz, finalmente teve a
decência de dar contratos a alguns dos milhares de trabalhadores a falsos
recibos verdes que empregava e sem os quais não funciona. Mesmo assim, muita
gente ficou de fora.
Mas é também verdade que tudo isto é tirado a ferros, cheio de expedientes e
dificuldades e que os governos deste país encontram sempre alguma forma de
contornar as leis da República e manter quem trabalha numa instabilidade
permanente. Veja-se o que se passa na Casa da Música, na Fundação de
Serralves e numa série de outros equipamentos culturais dependentes de
dinheiro público, eternamente a viver à custa da precariedade dos seus
trabalhadores. É isso que nos conta Fernando Pires de Lima, na entrevista que hoje publicamos.
Os direitos laborais e a vida das pessoas que apenas vivem do trabalho que o
seu corpo produz está sempre em risco. Nunca se sabe quando um governo decide
que as recomendações da OCDE, do FMI, do Banco Mundial ou da Comissão
Europeia vão ser finalmente aplicadas para "flexibilizar" o nosso
mercado de trabalho. Como se, na realidade, não se permitisse já tudo e um
par de botas. Nunca se sabe quando virá mais austeridade para se fazerem as
famosas “reformas estruturais”, seja lá isso o que for. Nunca se sabe quando
se decidem alterar os fatores de cálculo das pensões, as fórmulas que
determinam a idade da reforma ou os dias de indemnização por despedimento.
Vivemos assim num “nunca se sabe”. Bêbedas de instabilidade, inebriadas pelo
salve-se quem puder, constrangidas por uma economia capitalista onde quem
trabalha tudo paga e quem especula paga quase nada.
Sim, o Tiago tinha razão. O pior é a ressaca. E esta já dura há anos
demais.
Pedro Miguel Santos
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