«Quem é Ofélia? A noiva do Príncipe Hamlet cantada por
Jean-Arthur Rimbaud e pintada por Sir John Everett Millais? Ou a jovem
dactilógrafa com quem Fernando Pessoa se correspondeu, depois de lhe recitar
versos de Shakespeare? Talvez nenhuma das duas, talvez um pouco de ambas.
Ofélia é certamente mulher, tem corpo de mulher, sonha, deseja, ama. Cativa no
interior de uma ilusão, desta pretende libertar-se tornando-se real. Conseguirá
levar a cabo tamanho desígnio? Em cena, a actriz Marta Taveira oferece-lhe
corpo. Garantimos não haver Ofélia mais autêntica do que esta personagem
representada por quem lhe oferece nervo e músculo. Corpo em torno do qual três
criaturas imaginárias, heteronímicas, andam à deriva sondando as paredes da
fantasia. Aos actores António Parra, Fábio Costa e Ricardo Soares cabe
oferecerem física à química deste «romantismo só ismo, ismo, ismo.»
Resultado de uma encomenda feita pelo Teatro da Rainha, a peça “Na Cama com
Ofélia” marca a estreia de Henrique Manuel Bento Fialho na escrita para teatro.
Começou a publicar há 25 anos, distribuindo-se por géneros como a poesia, o
ensaio, a micronarrativa e o conto. São mais de 15 livros publicados, entre os
quais se destacam o recente “Micróbios” (Abysmo, 2021), na microficção, as
colectâneas de contos “Call Center” (Companhia das Ilhas, 2019) e “A Festa dos
Caçadores” (Abysmo, 2018), integradas no Plano Nacional de Leitura, o volume de
ensaios “Embate” (Medula, 2021) e o livro de poesia “Estalagem” (Medula, 2019).
Licenciado em Filosofia, o autor colabora regularmente com o Teatro da Rainha
desde 2018, nomeadamente na programação e realização de Diga 33 – Poesia no
Teatro.
Com encenação de Fernando Mora Ramos, cenografia de José Serrão, figurinos de
Sara Miro e iluminação de Jorge Ribeiro, “Na Cama com Ofélia” coloca em cena
uma dimensão onírica que tem por base a linguagem da epistolografia trocada
entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, mas excede as cartas num procedimento
de intertextualidade que parodia as fronteiras entre o verdadeiro e o falso, a
realidade e o sonho, a substância e o ideal. Num cenário que é um quarto, as
cenas desenvolvem-se tal como nos sonhos as fronteiras se estilhaçam e o
pensamento lógico desaparece. O que neste texto existe de lírico é sabotado
pelo cómico, o que nele há de cómico acaba minado pelo trágico: «Lá fora, a
vida continua.» Em cena, no Teatro da Rainha, a partir de 17 de Fevereiro, até
12 de Março.
«Trás, Trás! — cá está a Ofelinha!…» Onde? Onde está? Ofélia sonha. Movimenta-se e fala enquanto dorme. Ofélia, a sonâmbula, acorda e, envelhecida, dedica-se às artes do sobrenatural tentando tornar presente o corpo do Nininho. Terá sido numa noite do início de 1920 que o poeta Fernando Pessoa, aproveitando uma falha de luz no escritório Félix, Valadas & Freitas Ld.ª, se declarou à jovem dactilógrafa de nome Ofélia Queiroz, ajoelhando-se a seus pés e sussurrando palavras de Hamlet. Da relação entre Pessoa e Ofélia chegou-nos um célebre conjunto de cartas, a partir das quais se pensou esta cama transbordada de sonhos. “Na cama com Ofélia” estão as palavras, as projecções e os delírios, está o amor, um ideal de amor, estão as utopias, está o desejo de ver materializada uma paixão para lá das palavras e do sonho. Nesta peça, que resulta de uma encomenda, o lirismo poético vai sendo sabotado pelo humor tal como a ficção mina o real. E vice-versa. Estamos num campo de batalha crepuscular onde os opostos se confundem e a lógica é superada pelo possível. No centro, uma mulher. Um corpo. Desejo.
Henrique Manuel Bento Fialho»
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