sexta-feira, 22 de abril de 2022

CONTINUANDO COM EUNICE| agora com as palavras de Luís Miguel Cintra

 

 
Se puder leia o que Luís Miguel Cintra escreve sobre Eunice no Expresso desta semana, donde o excerto da imagem.  Depois de tanto ouvirmos e lermos, talvez seja apropriado dizermos isto: o melhor estava para chegar ... Chegou.
Não resistimos, mais este bocado: «(...)

Agora creio que já entendo melhor o que a tornava ge­nial. Todo o actor é inseguro, tem medo de não valer o suficiente para valer a pena pôr-se em cima de um palco diante de outras pessoas. Estamos, aliás, a assistir a cada passo, por via da televisão e dos valores egoístas em que a sociedade capitalista está a formatar as pessoas, à transformação da fraude como processo de trabalho dos actores. Escudando-se em clichés, pensam agradar a toda a gente. Só que a relação que um espectador procura num actor é a que lhe falta na vida, é a contrária, é uma relação íntima, afectiva, que o respeite na sua maneira de ser. E era aí que a Eunice era genial. Transformava a própria comunicação num veículo para a construção de uma maneira de ser, de uma personalidade que tinha gosto em expor-se generosamente diante dos outros. Mas que nos mostrava de si própria? Nada, afinal, mostrava, de janelas abertas de par em par, a sua própria atitude que transformava em conteúdo, ou nem isso, apenas a sua simulação. O que transmitia, mesmo representando monstros como a Mãe Coragem ou a Dona Branca, era, afinal, a própria sensação da generosidade, da entrega. Haverá alguma coisa de mais vital que isso? Que nos dará mais prazer que sentirmo-nos estimados? Nunca senti que a Eunice comunicasse ideias e sempre parecia que, por mais variantes que as diferentes personagens lhe dessem pretexto para se transformar, era para a Eunice que eu tinha estado a olhar e que a tinha visto a actuar para mim. Alguma coisa importante tinha acontecido: nascia viva, uma ilusão. Valia a pena vê-la, sim, mesmo que a verdade da sua exposição fosse apenas generosidade, entrega, risco de não ser ninguém, só ilusão.

E a vê-la representar percebi a outra coisa que pode fazer de nós bons actores e que ela viveu a sério: a certeza de que só existimos porque há os outros e o prazer de viver como resposta ao que a vida dos outros nos dá, a contracena. Tantas metamorfoses vi na Eunice que cheguei a dizer: olhem para a Eunice. Ela não existe, não tem personalidade. O seu eu foi mil coisas diferentes, quantas mais melhor, foi sempre o tu dos outros. E em que tesouro se torna a vida se deixarmos que o encontro com muitos outros nos faça viver muitas vidas, ser sempre uma resposta mais do que uma provocação! Por outras palavras, reconhecer no teatro a ampliação da natureza da vida como jogo. (...)». Mas o ideal  mesmo  é ler tudo...

 

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