Excertos:
«(...) O que o fez aceitar?
A ideia de que, embora não tenha dirigido nenhum teatro desta envergadura, todas as experiências que fui colecionando - e que são experiências obviamente artísticas mas também de programação e de gestão de uma companhia, de gestão de equipas, de ligação à comunicação e à edição -, me permitiam olhar para esse puzzle e perceber que, se calhar, dentro daquilo que são as competências de um diretor artístico de um teatro nacional e conhecendo o percurso de outros diretores - e até falando com alguns deles, como o Diogo Infante, o João Mota, o António Lagarto, o Tiago Rodrigues -, perceber que estava num momento não só da minha vida pessoal mas também da minha vida profissional que me permitia dar esse salto de confiança. Ou seja, de achar que poderia não só ser eventualmente a pessoa certa (até porque esse conceito é bastante elástico, não existe de forma absoluta), mas de pensar que, com estas experiências, conseguiria ter essa capacidade. Se me enganei ou não, não sei ainda. Mas pelo menos essa vontade de arriscar vinha dessa consciência de que poderia ter as ferramentas certas para o lugar.
Entretanto, o Governo mudou e temos um novo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva. Já falou com ele?
Sim, mandei-lhe uma mensagem de parabéns e combinámos falar. Nós já nos conhecíamos por causa das comemorações dos 50 anos do 25 de abril. Acho que vai correr muito bem. Foi inesperado também [a escolha de Pedro Adão e Silva], para muitas pessoas e para mim também, mas acho que faz todo o sentido. Já me dava muito bem com a ex-ministra e agora tenho toda a confiança que será igual.
Que ideia tinha deste teatro, antes de vir?
Há vários pontos da minha vida que se ligam ao Teatro Nacional e pontos estratégicos até. O primeiro espetáculo que eu vi na vida, era ainda criança, foi aqui: com o Virgílio Castelo, uma peça sobre o Vincent van Gogh, no Salão Nobre. Depois, quando acabei o Conservatório vim estagiar para o Teatro Nacional como ator e fiz um espetáculo do Almeida Garrett que se chamava "Falar a Verdade a Mentir", onde entrava em cena com uma camisa cor de rosa, cheia de folhos, fazia o protagonista da peça. E aí encontrei um Teatro Nacional onde ainda havia o elenco completo, com os grandes atores desta casa, tive um contacto muito próximo com essas pessoas. E depois experiências pontuais enquanto criador convidado e sempre com óptima relação com as equipas. mas olhando para o Teatro Nacional como muitos atores e encenadores portugueses olham, como uma casa-mãe do teatro, um sítio onde é preciso ir, estar, mas também é preciso cuidar, onde há todo um lado simbólico relacionado com a sua importância.
Entrar aqui como diretor artístico já é toda uma outra história. Estou nessa fase de me apaixonar por estes corredores. Cada vez mais confiante, mais confortável, neste espaço, naquilo que é necessário fazer. O teatro não é só o edifício, estou muito consciente desse facto. O edifício é muito importante mas a missão pública não se resume de todo a este edifício. Aliás, em 2023 vamos estar fora, portanto torna-se ainda mais importante pensar na missão do Teatro Nacional como uma missão mais nacional, que não é só de Lisboa - nunca foi mas nesse ano vai ser ainda mais óbvio. É todo um processo de habituação, de conhecer as pessoas, de conhecer os projetos, os dossiers, é uma estrutura muito complexa, muito pesada - no seu simbolismo mas também na quantidade de projetos que por aqui passam e que são necessários. Foram cinco meses de grande aprendizagem. Havia muita informação que eu não tinha.
Ainda se perde nos corredores?
Menos, mas de vez em quando ainda encontro uma porta fechada e penso onde irá dar. É um edifício bastante labiríntico e encontrar-me ainda demora o seu tempo.
Quando aceitou ser diretor artístico impôs-se um objetivo? Tem uma visão para este teatro?
Eu gostava que o Teatro Nacional pudesse ser ainda mais plural, mais aberto e mais justo na forma como funciona, como as escolhas são feitas, que espetáculos são apresentados, da representatividade de quem aqui está. Não é um trabalho que comece comigo nem que começa agora, começou muito antes. Acho que há ainda muitas portas por abrir, muita coisa por fazer também do ponto de vista da estrutura, que é sempre mais complexa, porque se trata de um organismo do Estado, e por isso tem toda uma complexidade na forma como funciona.
Mas julgo que podemos caminhar nesse sentido, de acompanhar a grande vitalidade da criação portuguesa - e há muita gente que não tem consciência de como o teatro português é vital e diverso esteticamente, em termos de gerações. O Teatro Nacional deveria ser espelho de tudo isso, não é só um teatro para jovens, não é só um teatro para históricos do teatro, é um teatro para que todas essas pessoas possam conviver, colaborar e apresentar coisas que possam fazer sentido. Também toda a sua carga histórica fascinante e importantíssima, cheia de narrativas maravilhosas, que às vezes as pessoas não conhecem, sem esquecer que estamos em 2022 e estamos a fazer teatro para as pessoas que estão vivas neste momento e portanto há toda uma sensibilidade contemporânea que é preciso respeitar e fazer vingar.
E depois essa ideia da abertura destas portas. A casa arquitetonicamente é bastante brutal, é muito virada para dentro, tem poucas janelas, entra aqui pouca luz, vamos tentar que isso mude com as obras que vamos fazer em 2023. Existe esse lado arquitetónico e depois um lado conceptual de abertura para esta cidade, para esta envolvente, para o país, e que é um trabalho muito necessário e que já está em andamento. Isso deixa-me muito contente.
Até aqui era sobretudo um criador, com uma carreira própria, autonomia. Agora é diretor do Teatro Nacional. É um salto enorme. Como é que o criador se adaptou a esta nova função?
É preciso ter essa consciência de que ser um artista não chega. Ao estar nesta posição, há essa expectativa de que continue a criar alguns espetáculos, dentro do Teatro Praga já fazia algumas coisas em número próprio, havia já alguma afirmação do que era o meu trabalho em nome individual, e isso continua a fazer sentido aqui como diretor do teatro, e eu quero fazê-lo. Artisticamente e criativamente, continuo a ter ideias, há coisas que quero explorar, pessoas com quem quero colaborar e por isso quero continuar a criar mas já com este novo enquadramento.
Mas, depois, há toda uma ideia de missão pública que é muito politizada, mas também é muito organizativa, que precisa dessa estrutura de pensamento estratégico que ultrapassa muito as questões do meu gosto pessoal. Já me sentei nestas salas a ver espetáculos que se calhar não estão dentro do meu gosto pessoal, mas percebo a importância de estarem aqui e de serem apresentados. Não é de todo a coutada de uma geração específica com uma estética específica. Eu sou o diretor e tenho esse background, não o vou recusar mas não o vou usar como uma arma, porque sei que isto é muito maior do que a minha presença e do que eu próprio. Mas sem me anular também. Não quero transformar-me num tecnocrata. Não foi para isso que me chamaram. Continuo a ter a minha biblioteca pessoal, o meu passado, os meus interesses, eles seguem-me. Mas agora há uma macrovisão sobre a importância deste espaço, sobre o que deve estar aqui dentro, sobre o que deve ser mostrado, sobre a sua dinâmica. Estou nesta posição, que é obviamente uma posição fulcral para o que acontece aqui, mas em que importa menos o meu gosto e importa mais a visão geral da classe, do setor e do país, nesse sentido do nacional, de um teatro que não é de Lisboa, é de Portugal.
O que podemos esperar da sua programação? Criações? Acolhimentos?
Este é um teatro de criação. Essa é, eventualmente, a vertente mais importante. É um teatro que cria repertório, que cria espetáculos e que nesse sentido pode fazer propostas a vários criadores, pode aceitar propostas de co-criação, de criação com várias gerações de artistas e várias estéticas, mas é uma casa de criação e que, por isso, de alguma forma define o que é o teatro português em 2022 a partir dessa programação que vai propondo temporada após temporada. Mas é muito plural, até nas estratégias que usa, que pode ser comissariar por interposta pessoa, fazendo um convite direto, pode ser uma proposta que chega por um ator ou encenador, temos também um elenco residente e a casa faz uso dos seus próprios atores para criar o seu repertório; e depois tem uma biblioteca e um arquivo extensíssimo, que deve sempre usar para revisitar o repertório clássico e o mais contemporâneo. Mas sempre com a ideia de ser uma casa de futuro. Estamos a programar - e programar é geralmente um exercício de futurologia, porque nunca sabemos exatamente se o papel vai corresponder àquilo que depois se concretiza em cena.
Vamos continuar a ter aqui os clássicos?
O Teatro Nacional devia ser o teatro onde as pessoas podem ir ver sempre um clássico, sou muito dessa opinião. Mas depois também a ideia de projetar um futuro, não só nacional mas internacionalmente, o teatro faz parte de várias redes internacionais e tem muitas parcerias com projetos internacionais e que dão conta dessa vitalidade de pensamento e de ação. O Teatro Nacional deve estar com um pé nesse passado mais distante, no tempo da Amélia Rey Colaço, no tempo do Gil Vicente, no tempo do Almeida Garrett, mas também com um outro pé naquilo que ainda não se conhece, ainda não se sabe, num formato que ainda não se inventou, numa maneira de pensar o teatro que ainda ninguém conseguiu verbalizar. Essa tensão entre as duas coisas é fascinante. (...)».
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