[Aqui vão algumas generalizações abusivas em prol da
clareza.] O jornalismo, em traços gerais, perdeu tempo, memória,
contexto, e alguma imaginação. Tornou-se mais uniforme, imediatista e
pequeno. José Pacheco Pereira fez um retrato nestas linhas no programa É ou Não é, da RTP, na semana
passada, que acredito que seja pacífico, se não até consensual. Não é
alheio à tendência para a cobertura em espelho de uma mesma agenda, mais
ditada por instituições do que por iniciativa das redações; diretos em
excesso, vazios de interesse público. Há dificuldade em contrariar
discursos de poder (ou a contradição tende para a argumentação frágil).
Comentadores e analistas têm rédea livre de contraditório ou verificação
de factos. E o jornalismo rápido tem, por definição, cada vez menos densidade,
investigação e rasgo.
Pensar nestes
termos é útil à autocrítica e às discussões sobre a ética da profissão.
Mas acho impossível fazê-lo sem primeiro considerar o modelo de negócio
precarizante das empresas que gerem as redações e a erosão dos direitos
laborais de quem lá trabalha. Não sei que acessos de criatividade se
podem exigir a uma jornalista com 20 anos de profissão, especializada às
expensas próprias, que leva 1000 euros para casa ao fim do mês, e que vê
diariamente o seu valor profissional indexado a um ecrã de medição de
audiência e clicks atualizado ao segundo. Ontem, trabalhadores da TSF cumpriram 24 horas de greve
– a primeira nos 35 anos da rádio –, reivindicando, entre outras
questões, a efetivação de aumentos salariais propostos pela
administração, que (ainda que mais baixos do que as exigências da
redação) acabaram por ser aceites, mas nunca aplicados.
A discussão
sobre a profissão dá muitas voltas, mas tarda em debruçar-se sobre a
necessidade de revolucionar o modelo de sustentabilidade do jornalismo.
Não sabemos como tê-la sem pensar numa profunda remodelação do sistema: o
fim dos falsos recibos verdes e dos salários indignos, incapazes de
contrariar a saída de jornalistas ao fim de uma ou duas décadas para
cargos de assessoria ou comunicação; o fim da crença de que este é um
problema de gestão, com culpa partilhada entre jornalistas e leitores,
que se salva à custa de mais conteúdos, mais rápidos, apenas acessíveis à
curta fatia da população que pode e escolhe pagar por uma ou duas
assinaturas. Isto é uma repetição do que dissemos muito melhor em 2019, numa
conferência sobre financiamento dos media: precisamos de uma revolução
para garantir a sustentabilidade do jornalismo e não para salvar o
negócio dos média.
Não vai ser o
Estado a resolver sozinho este problema, mas tem que fazer parte da
solução. Deve ter a obrigação legislada de ser radicalmente transparente.
Mas, em 2019, na mesma conferência, os diretores de grandes órgãos
presentes rejeitaram-no, por desconfiarem demasiado dos riscos de
influência. Não consigo encontrar motivos para desconfiar mais de um
governo do que de grandes empresas de média opacas, às quais obrigações
de transparência, de gestão democrática, ou de prestação de contas não se
colocam da mesma forma, ou até de forma nenhuma. Também o mesmo risco que
se corre com uma autarquia se pode aplicar a uma empresa privada local.
Com que argumentos se defende que privados têm menos interesses do que o
Estado?
Uma empresa
privada com tamanho suficiente para deter um grupo de comunicação social
não é menos poder do que um órgão de soberania. Se uma maioria das
redações não dão lucro, o investimento não se faz certamente pelo retorno
financeiro, mas pela sua tradução em poder. Daniel Oliveira, jornalista e
comentador político, chama-lhe mecenato ideológico. E, por
coerência, ou achamos que ele não existe – e então temos poucos motivos
para desconfiar do Estado –, ou reconhecemos que ele existe e criamos
para o Estado, para as empresas e para todos os financiadores de
jornalismo mecanismos de transparência radicais que protejam as redações
e jornalistas de quaisquer tentativas de interferência editorial. Com
base nisto, o jornalismo terá mais argumentos para trabalhar a confiança
do público, desenvolver a literacia mediática (demonstrando como é que a
máquina funciona), e, em última análise, atiçar a crítica das próprias
jornalistas para participarem no rumo de financiamento dos seus próprios
locais de trabalho.
Acreditamos que
é essencial um programa de bolsas públicas de apoio às estruturas
jornalísticas sem fins lucrativos, e de bolsas de apoio à investigação
jornalística individual, para freelancers e profissionais de grandes
redações. É urgente diversificar fontes de rendimento que não perpetuem
as lógicas precarizantes que nos trouxeram ao lugar onde estamos e abram
o jornalismo a toda a gente. São precisos incentivos financeiros à
contratação de jornalistas com vínculos de trabalho não precários; linhas
de crédito ou apoios a fundo perdido para a criação de novas redações
independentes e para a transição de já existentes para modelos sem fins
lucrativos, com estatuto de utilidade pública. Precisamos de uma
discussão séria sobre a lei de mecenato, em linha direta com fundações,
para o financiamento cego ao jornalismo. Precisamos de autorregulação
forte e de uma Entidade Reguladora da Comunicação Social alerta e
crítica, não só da deontologia da profissão, como das condições laborais
das redações.
À nossa volta
(uma amostra fechada numa bolha, claro), é impressionante o número de
jornalistas que abandonam a profissão no momento em que os anos de espera
superam qualquer expectativa de que as condições de trabalho melhorem (ou
não se continuem a degradar). É, para mim, o maior sinal de rutura de um
sistema.
Este texto
reúne reflexões conjuntas da redação do Fumaça, partilhadas nos últimos
anos (primeiro aqui, depois aqui, aqui e aqui). Está longe de ser uma discussão
nova. Só falta que seja abrangente e demolidora.
Até já,
Margarida
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