quinta-feira, 29 de junho de 2017

PEDAÇOS DE UM COLÓQUIO (2) | «Uma vergonha, uma emergência e uma preocupação adicional»





Na integra uma das intervenções  havidas no Colóquio da imagem - enviada por um leitor do blogue - e  a que já nos tínhamos referido em post anterior:
 «Uma vergonha, uma emergência e uma preocupação adicional*
O meu nome é Pedro Rodrigues e sou produtor d'A Escola da Noite, uma companhia de teatro profissional sediada em Coimbra, com 25 anos de actividade regular.
É em nome desta companhia que aqui estou e que agradeço o convite. Valorizamos a iniciativa deste colóquio e o facto de a Assembleia da República ter querido ouvir os profissionais das artes. Agradeço também os contributos dos oradores iniciais, que ajudam a enquadrar a discussão e a relembrar por que faz sentido financiar a criação artística. Permitam-me saudar de forma especial João Maria André, que há cinco anos integrou um júri que, com coragem e sentido de responsabilidade, fez com que a situação que hoje vivemos não fosse ainda mais calamitosa.
O respeito que tenho por esta instituição e por cada um/a de vós exige de mim a máxima frontalidade. Quero por isso falar-vos, muito brevemente, de três coisas: de uma vergonha, de uma emergência e de uma preocupação adicional.

1. A vergonha
A vergonha, senhoras deputadas e senhores deputados, é que o orçamento para a cultura represente em 2017 pouco mais do que 0,1% do Orçamento Geral do Estado (OGE). Mais grave ainda, que esta percentagem tenha vindo a cair nos últimos 15 anos: entre 2002 e 2017, o peso da cultura no OGE caiu de 0,5 para 0,1%. Ainda mais do que os números absolutos, que naturalmente são afectados pela situação geral do país, este indicador é muito relevante – ele mede o peso (a importância, portanto) que a cultura tem ou não tem no conjunto das políticas públicas. Não é possível fazer discursos em que se valoriza a cultura como “eixo fundamental para o desenvolvimento do país” e aceitar esta quebra no orçamento. Todas as deputadas e todos os deputados – sem excepção – que já aprovaram orçamentos nos quais a cultura vale apenas 0,1% devem, no mínimo, sentir o peso desta contradição.
Ainda no capítulo da vergonha, queria lembrar-vos que o somatório dos principais apoios às artes – estes, de que hoje estamos a falar – passou de 21 milhões de Euros em 2010 para menos de 13 milhões em 2016. É uma quebra de 40%. Algumas e alguns de vós contribuíram para que isto acontecesse. Quero também dizer-vos que estes apoios – fundamentais para a existência de criação artística em Portugal não limitada às regras do mercado, representam apenas 6% do total do orçamento do Ministério da Cultura. Não me enganei: 6%. Seis por cento de 0,1% do Orçamento Geral do Estado. Será útil que se lembrem disto sempre que se confundir o “orçamento da Cultura” com “subsídios aos artistas”.

2. A emergência
Em resultado dos cortes que foram feitos, artistas e estruturas artísticas estão hoje numa situação de emergência absoluta. As que sobreviveram, claro. Porque muitas não resistiram e tiveram de fechar portas, incluindo – digo eu – a melhor de nós todas. Mas não quero falar de casos particulares. Dou-vos mais um número: os apoios quadrienais e bienais são atribuídos às estruturas que o Estado considera que reúnem melhores condições para prestar serviço público de uma forma continuada (há uns anos atrás até lhes chamavam “apoios sustentados”). Sabem qual é o apoio médio dado a estas estruturas? 71 mil Euros/ano. O apoio médio, sublinho. Pensem, senhoras deputadas e senhores deputados, que sustentabilidade é esta que o Estado diz garantir.
Companhias que fecharam, redução drástica na produção, artistas a abandonar a profissão ou o país, jovens formados que não chegam a ter oportunidades de trabalho, criação artística obrigada a mercantilizar-se para sobreviver. É nisto que estamos – nesta emergência, hoje.

3. Uma preocupação adicional
A preocupação adicional vem do facto de me parecer que o actual Governo não percebeu ainda (ou não quer perceber) a gravidade da situação. Estamos a meio do mandato, os orçamentos mantêm-se sem alterações significativas e continuamos sem perceber o que pretende o Governo alterar nos regulamentos. Nenhum debate a sério foi feito com os/as profissionais.
Pelo contrário, multiplicam-se acções de propaganda, adiamentos sucessivos de prazos e até tentativas de manipulação da discussão pública. Dou-vos três exemplos:
1.      “Desta vez, Costa olhou para a cultura” - era o título do Público no dia em que o OGE/2017 deu entrada nesta casa. Demorou menos de 24 horas a perceber-se que o orçamento tinha, isso sim, operações de engenharia orçamental e que o essencial se mantinha na mesma.
2.     O Secretário de Estado chama repetidamente “apoio extraordinário” a coisas que resultam do mero (e incompleto) cumprimento da Lei – veja-se o caso dos concursos para apoios pontuais, aberto este ano.
3.     Foi criada uma nova associação, por iniciativa governamental, para “representar o sector”. Chama-se Performart. Digo que é de iniciativa governamental porque entre os seus 14 fundadores estão seis instituições públicas e duas fundações nas quais o Estado tem assento. Não consta que o Teatro Nacional de São João, a OPART, o CCB ou o TNDMII possam criar associações sem a anuência da tutela.

Este tipo de comportamentos, em cima de uma situação de emergência e perante a vergonha que é o orçamento, introduz um problema adicional, que é o da crise de confiança entre artistas e instituições oficiais. Estamos cansados e não é de fazer o nosso trabalho. Estamos cansados de discussões estéreis e de repetidamente nos sentirmos enganados, utilizados, manipulados. Houve quem não viesse a esta reunião por causa deste cansaço.
Está mesmo nas vossas mãos, senhoras deputadas e senhores deputados, fazer com que as coisas mudem:
- Não aprovem mais nenhum Orçamento do Estado em que a cultura valha apenas 0,1%;
- Exijam a reposição das verbas para o apoio às artes em níveis minimamente sérios;
- Sejam parte activa na discussão dos novos regulamentos e garantam que estes servem o interesse público;
- Salvaguardem o nosso direito de participar nesta discussão e obriguem o Governo a fazer uma verdadeira discussão pública;
- Fiscalizem, como vos compete, o cumprimento das leis que existem, dos prazos anunciados, dos orçamentos aprovados;
- Contribuam, enfim, para restaurar a relação de confiança entre Estado e criadores/as.
Muito obrigado».

Continua ...

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