Para quem possa estar hesitante em (re)ver Éric Rohmer no cinema Nimas em Lisboa, o que o critico Jorge Leitáo Ramos escreveu - na revista «E» no Expresso da semana passada - é capaz de ajudar a decidir:
«No princípio era Haydée Politoff em “A Colecionadora”, de biquíni, a passear na praia, os pés na água, os pés em grande plano, depois. Logo a seguir, o olhar torna-se perscrutador, aproxima-se, detém-se nas coxas, nas espáduas, na zona púbica e faz varrimentos verticais e não é como quem descreve, é como quem aprecia, cobiça ou antecipa. E logo ali se mostra que o homem que escrevera “L’Organisation de l'Espace dans le Faust de Murnau” (um dos mais admiráveis e minuciosos livros sobre cinema que conheço) cuidava, no seu trabalho de cineasta, da mise-en-scène, da arte de organizar o ‘quadro’, as geometrias, os equilíbrios, os cromatismos, algo em que Éric Rohmer é um mestre. Mesmo nos seus filmes que parecem feitos em clima de improviso, como os da série “Comédias e Provérbios”, mesmo quando simulam ser à vol d’oiseau, há um rigor espantoso, de tal modo que quase se pode fazer, para os seus filmes, fotograma a fotograma, cena a cena, uma análise similar à que Barthes exemplificou para a literatura no seu “S/Z”.
No princípio era Jean-Louis Trintignant e Françoise Fabian num aconchego longo (“A Minha Noite em Casa de Maud”) e falam, falam, falam, de Pascal e do cristianismo, de mulheres e de moral, de jansenismo e de desprezo, de fidelidade e de amor-próprio. Ela está na cama, ele não, mas foi ficando — e falam. Falam e é um dos mais extraordinários atos de sedução intelectual entre um homem e uma mulher que o cinema alguma vez materializou. No princípio era o corpo e era o verbo. E, claro, o tempo. O tempo, no cinema de Éric Rohmer, em sentido meteorológico, é essencial, é uma das matrizes onde se instalam a psicologia dos personagens, os seus estados de alma, a sua transitória natureza.
Da neve fria e dos dias brumosos de “A Minha Noite em Casa de Maud” (que acaba, em desgosto, num dia de verão) à solaridade estival, a convidar ao despojamento, à lassidão, ao sexo descomprometido, de “A Colecionadora”, poucos cineastas captaram o tempo de uma forma tão vívida e tão significante. A chuvada veraniça em “O Joelho de Claire” é um casulo propício à intimidade e a uma certa vilania. Para um homem que achava que no cinema não cabem metáforas literárias, a meteorologia foi um dos recursos mais inteligentemente subtis a que recorreu ao longo de uma obra extensa e frutífera. E, já agora, divinamente perversa, as mais das vezes em tom de comédia branda, no seu gosto pelos jogos de sedução em que os homens são sempre mais irrisórios que as mulheres e onde os resultados são usualmente inferiores às expectativas e aos desejos dos comparsas.
Chamemos à conversa “O Amor às Três da Tarde” e a desorientação de um jovem advogado, bem na vida, bem casado e bem parecido, face ao mecanismo de fascinação com que Zouzou o rodeia — e que acaba com o protagonista conformado à rotina que o filme mostra com um pingo de tristeza, mas sem sombra de veredicto. Dir-se-ia ser a ausência de julgamento outra das regras básicas de um criador cinematográfico que duradouramente olhou pessoas e sentimentos, pessoas de que gostava sem ser obrigado a com elas concordar. Pessoas de que se ocupou em mais de 50 anos de filmes. (...)».
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