No tempo da crítica de teatro havia sempre um outro tipo de comentário ao que fazíamos, não em qualidade, pois cada um dirá algo sempre singular, mesmo que ao lado, significativo e útil, mas pelo facto de ser um comentário criticamente estruturado segundo um modelo determinado, aberto a fazer entrar outros no que o crítico vira e podia desvelar, esclarecer, ler eventualmente com outras armas.
Saudades desse tempo, do Carlos Porto – que tantas vezes veio -, da Helena Dá Mesquita, da Helena Serôdio, da Manuela de Azevedo, do Manuel João Gomes – que tantas vezes nos seguiu entre Évora, Coimbra e Caldas – do Fernando Midões – apesar dos disparates – do Tito Lívio, na Capital, sempre tão elogioso, até do Listopad, que ficou de olhos esbugalhados – e com invídia – no AQ do Christoph Hein, esse dramaturgo crítico do regime da RDA que da RDA veio ver o espectáculo, ele que era Checo, o Listopad, claro.
Hoje em dia apenas existem a publicidade e o centralismo – a globalização localiza no centro o espectáculo, os cumes do espectáculo – a primeira faz do jornalismo cultural, de cada artigo, uma peça promocional do que “está a dar”, o segundo estrutura essa promoção publicitária, esse sistema de apologia para-empresarial, no centro, isto é, no centro do centro da Capital. É estruturante e mantém alta a chama do “Lisboa é a capital e o resto é paisagem”. Com tanto paleio sobre regionalização, descentralização e outros descentramentos que sempre centralizam, o facto é que todos os que decidem, cada um na potência do seu poleiro, mormente os provincianos militantes provincialmente, fazem tudo o que entendem relevante em Lisboa e vêm à província em raid, o que os locais bajulam e agradecem fazendo fundos de cena. Ninguém deslocaliza as suas estruturas para outro centro em construção, pelo contrário, quanto mais regionalização mais centramentos.
É também por estas razões que as opiniões que se seguem são uma arma contra o silêncio estruturante dos média, sejam de latrina, sejam de referência.
No meio disto, a aliança contra o centralismo, continua.
Teatro, autêntico, sempre, sempre, ao lado do povo».
fernando mora ramos
Alceste denuncia, de modo agastado, a hipocrisia que grassa entre as classes com poder e dinheiro, a falsidade que campeia nas relações sociais, a frivolidade, a cupidez e a imoralidade que alastra nas ligações amorosas, destruindo as noções ancestrais do romantismo e do respeito conjugal. John, ataca-o, acusando-o de afectado, de ser um moralista, um elitista autoproclamado, ao que Alceste contrapõe, afirmando-se contra uma sociedade que vive de salamaleques e rapapés, de cortesias e parlapiés, falsidades e vazio.
São as vidas de mentira, de aparências, de jogos de espelhos, de má-língua e intriga, que exaspera Alceste, e que Crimp vai buscar a Molière, que leva o autor de O Resto Já Devem Conhecer do Cinema, a duramente criticar as classes possidónias e o que as derivas neoliberais vêm construindo, a nível da degenerescência dos comportamentos sociais e do seu lado opaco e falso, nas sociedades contemporâneas. Vive-se, em alguns círculos, o efémero, a dissimulação, o lado plástico e falso da vida onde, já não o céu, mas o dinheiro e o domínio que a partir dele se obtém, são o limite, mesmo pisando quem se atreve a estorvar o caminho até ao topo. É dessa imoral frivolidade, dessa ausência de escrúpulos, de valores humanos e morais, que a peça de Crimp, com o apoio de mestre Molière, nos fala, utilizando o tom sério e acutilante que a comédia permite.
Quando em 1973, Luís Miguel Cintra encenou na Cornucópia a peça de Molière era outro o país, e foi outra a preocupação de Cintra na abordagem cénica de O Misantropo, virada então, dentro dos limites concedidos pela Censura, para a denúncia do cinismo beato e das injustiças praticadas pelo Estado Novo. Sobre este seu espectáculo, dirá Cintra ser uma responsabilidade e uma espécie de vida, aquela que se tentava, ao tempo, criar num palco.
O teatro, sobretudo as peças que Nuno Carinhas continua a encenar para nosso desassossego e gáudio, trazem-nos sempre cadinhos de vida, de verdades, de sinais e de responsabilidades cívicas, morais e éticas que se colam à vertigem dos nossos conturbados dias e nos alertam para a espécie de vida que estamos a viver – a sua dura factualidade.
Como é que uma peça com mais de 300 anos, embora magnificamente reconstruída nos seus propósitos originais, continua a ter plasmados no seu inventário crítico, os mesmos vícios, os mesmos atropelos, a mesma cupidez, os mesmos pesadelos que Molière já denunciava no século das luzes?
Por isso, porque as pessoas e as suas circunstâncias não mudaram na essência, é que Alceste ao acordar verifica que está só, que o mundo que o rodeia, mesmo aqueles que lhe eram mais próximos como John e Marcia, continua a viver uma farsa, um baile de máscaras, um embuste embrulhado em luxo. De que lhe servirá o seu afrontamento, a sua verdade se esse mundo, ao qual pertence, ensurdeceu e cegou? (...)».
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