quinta-feira, 2 de junho de 2022

CRÍTICOS DE TEATRO | TAMBÉM TEMOS SAUDADES | «(...)desse tempo, do Carlos Porto – que tantas vezes veio -, da Helena Dá Mesquita, da Helena Serôdio, da Manuela de Azevedo, do Manuel João Gomes – que tantas vezes nos seguiu entre Évora, Coimbra e Caldas – do Fernando Midões – apesar dos disparates – do Tito Lívio, na Capital, sempre tão elogioso, até do Listopad, que ficou de olhos esbugalhados – e com invídia – no AQ do Christoph Hein, esse dramaturgo crítico do regime da RDA que da RDA veio ver o espectáculo, ele que era Checo, o Listopad, claro. (...)»

 


«A opinião dos espectadores é para nós determinante, quero dizer, estimulante. O eco crítico, apologético, negativo, contraditoriamente saudável é pão para a nossa boca, nós que andamos sempre metidos nos afazeres do fazer teatro e temos défice de ler o que fazemos por excesso de fazer/ver, a mão dentro, na prosa cénica, sempre – e já lá vão 37 anos de Teatro da Rainha, mulher como Ophélia, Leanor. E como a próxima, a Lucrécia de Mandrágora, de Maquiavel, texto genial.
No tempo da crítica de teatro havia sempre um outro tipo de comentário ao que fazíamos, não em qualidade, pois cada um dirá algo sempre singular, mesmo que ao lado, significativo e útil, mas pelo facto de ser um comentário criticamente estruturado segundo um modelo determinado, aberto a fazer entrar outros no que o crítico vira e podia desvelar, esclarecer, ler eventualmente com outras armas.
Saudades desse tempo, do Carlos Porto – que tantas vezes veio -, da Helena Dá Mesquita, da Helena Serôdio, da Manuela de Azevedo, do Manuel João Gomes – que tantas vezes nos seguiu entre Évora, Coimbra e Caldas – do Fernando Midões – apesar dos disparates – do Tito Lívio, na Capital, sempre tão elogioso, até do Listopad, que ficou de olhos esbugalhados – e com invídia – no AQ do Christoph Hein, esse dramaturgo crítico do regime da RDA que da RDA veio ver o espectáculo, ele que era Checo, o Listopad, claro.
Hoje em dia apenas existem a publicidade e o centralismo – a globalização localiza no centro o espectáculo, os cumes do espectáculo – a primeira faz do jornalismo cultural, de cada artigo, uma peça promocional do que “está a dar”, o segundo estrutura essa promoção publicitária, esse sistema de apologia para-empresarial, no centro, isto é, no centro do centro da Capital. É estruturante e mantém alta a chama do “Lisboa é a capital e o resto é paisagem”. Com tanto paleio sobre regionalização, descentralização e outros descentramentos que sempre centralizam, o facto é que todos os que decidem, cada um na potência do seu poleiro, mormente os provincianos militantes provincialmente, fazem tudo o que entendem relevante em Lisboa e vêm à província em raid, o que os locais bajulam e agradecem fazendo fundos de cena. Ninguém deslocaliza as suas estruturas para outro centro em construção, pelo contrário, quanto mais regionalização mais centramentos.
É também por estas razões que as opiniões que se seguem são uma arma contra o silêncio estruturante dos média, sejam de latrina, sejam de referência.
No meio disto, a aliança contra o centralismo, continua.
Teatro, autêntico, sempre, sempre, ao lado do povo».
fernando mora ramos
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Também temos saudades de Critica de Teatro sistemática. Com Criticos/as de Teatro muito aprendemos enquanto espectadora. Nomeadamente com as pessoas acima referidas.  E sobre determinado espectáculo nem sempre vimos o que a critica viu ... Umas vezes até mudámos de «opinião», outras «continuámos na nossa»... Mas isto, a nosso ver, é bom,  faz parte do processo.
Também gostamos de conversas. E no ciclo mais recente da Companhia de Teatro de Almada a propósito da peça «O Misantropo», com texto  de Martin Crimp - veja NO TEATRO MUNICIPAL JOAQUIM BENITE | ESTREIA | «O Misantropo» | 29 ABR 2022 -  apareceu, de forma natural, a questão da critica/críticos. Mas a dinâmica do encontro não levou a que se fosse fundo. Talvez por isso nos lembrámos do texto de  Fernando Mora Ramos acima,  e que aqui estamos a partilhar.



Nestas andanças tropeçámos neste Martin Crimp do Teatro da Rainha - peças que tínhamos visto:



E consolida-se a nossa ideia: há um conhecimento e um prazer que só a arte, na circunstância o Teatro,  nos dá ... E por aqui o nuclear do SERVIÇO PÚBLICO que se reivindica. 
E justifica-se que se traga para este post uma critica, precisamente ao «O Misantropo»: 


Outro excerto:«(...)A evo­cação do texto de Mo­lière, que serve de apoio à agu­deza crí­tica que per­corre o texto do dra­ma­turgo in­glês, acon­tece logo no início da peça de Crimp, num diá­logo sobre a ver­dade e o em­buste nas so­ci­e­dades con­tem­po­râ­neas, no­me­a­da­mente entre as classes pri­vi­le­gi­adas li­gadas às artes (ci­nema, te­atro, ta­bloides e re­vistas de co­ração), es­ta­be­le­cido entre mi­san­tropo Al­ceste e o seu amigo John.

Al­ceste de­nuncia, de modo agas­tado, a hi­po­crisia que grassa entre as classes com poder e di­nheiro, a fal­si­dade que cam­peia nas re­la­ções so­ciais, a fri­vo­li­dade, a cu­pidez e a imo­ra­li­dade que alastra nas li­ga­ções amo­rosas, des­truindo as no­ções an­ces­trais do ro­man­tismo e do res­peito con­jugal. John, ataca-o, acu­sando-o de afec­tado, de ser um mo­ra­lista, um eli­tista au­to­pro­cla­mado, ao que Al­ceste con­trapõe, afir­mando-se contra uma so­ci­e­dade que vive de sa­la­ma­le­ques e ra­papés, de cor­te­sias e par­la­piés, fal­si­dades e vazio.

São as vidas de men­tira, de apa­rên­cias, de jogos de es­pe­lhos, de má-língua e in­triga, que exas­pera Al­ceste, e que Crimp vai buscar a Mo­lière, que leva o autor de O Resto Já Devem Co­nhecer do Ci­nema, a du­ra­mente cri­ticar as classes pos­si­dó­nias e o que as de­rivas ne­o­li­be­rais vêm cons­truindo, a nível da de­ge­ne­res­cência dos com­por­ta­mentos so­ciais e do seu lado opaco e falso, nas so­ci­e­dades con­tem­po­râ­neas. Vive-se, em al­guns cír­culos, o efé­mero, a dis­si­mu­lação, o lado plás­tico e falso da vida onde, já não o céu, mas o di­nheiro e o do­mínio que a partir dele se obtém, são o li­mite, mesmo pi­sando quem se atreve a es­torvar o ca­minho até ao topo. É dessa imoral fri­vo­li­dade, dessa au­sência de es­crú­pulos, de va­lores hu­manos e mo­rais, que a peça de Crimp, com o apoio de mestre Mo­lière, nos fala, uti­li­zando o tom sério e acu­ti­lante que a co­média per­mite.

Quando em 1973, Luís Mi­guel Cintra en­cenou na Cor­nu­cópia a peça de Mo­lière era outro o país, e foi outra a pre­o­cu­pação de Cintra na abor­dagem cé­nica de O Mi­san­tropo, vi­rada então, dentro dos li­mites con­ce­didos pela Cen­sura, para a de­núncia do ci­nismo beato e das in­jus­tiças pra­ti­cadas pelo Es­tado Novo. Sobre este seu es­pec­tá­culo, dirá Cintra ser uma res­pon­sa­bi­li­dade e uma es­pécie de vida, aquela que se ten­tava, ao tempo, criar num palco.

O te­atro, so­bre­tudo as peças que Nuno Ca­ri­nhas con­tinua a en­cenar para nosso de­sas­sos­sego e gáudio, trazem-nos sempre ca­di­nhos de vida, de ver­dades, de si­nais e de res­pon­sa­bi­li­dades cí­vicas, mo­rais e éticas que se colam à ver­tigem dos nossos con­tur­bados dias e nos alertam para a es­pécie de vida que es­tamos a viver – a sua dura fac­tu­a­li­dade.

Como é que uma peça com mais de 300 anos, em­bora mag­ni­fi­ca­mente re­cons­truída nos seus pro­pó­sitos ori­gi­nais, con­tinua a ter plas­mados no seu in­ven­tário crí­tico, os mesmos ví­cios, os mesmos atro­pelos, a mesma cu­pidez, os mesmos pe­sa­delos que Mo­lière já de­nun­ciava no sé­culo das luzes?

Por isso, porque as pes­soas e as suas cir­cuns­tân­cias não mu­daram na es­sência, é que Al­ceste ao acordar ve­ri­fica que está só, que o mundo que o ro­deia, mesmo aqueles que lhe eram mais pró­ximos como John e Marcia, con­tinua a viver uma farsa, um baile de más­caras, um em­buste em­bru­lhado em luxo. De que lhe ser­virá o seu afron­ta­mento, a sua ver­dade se esse mundo, ao qual per­tence, en­sur­deceu e cegou? (...)».




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