«No início da década de 1940, Francisco José Tenreiro participou na coletânea Novo Cancioneiro, que assinala a afirmação da poesia neorrealista no panorama cultural português, com a obra Ilha de Santo Nome. A par da sua intervenção artística e com uma carreira académica desenvolvida em Portugal, o poeta e intelectual são-tomense esteve entre os nacionalistas africanos da Casa dos Estudantes do Império e fundou, com Amílcar Cabral, Agostinho Neto, entre outros, o Centro de Estudos Africanos. Apesar destas ligações e do trabalho que desenvolveu, Tenreiro rejeitou juntar-se à oposição ao regime fascista e colonialista português. Com uma carreira académica e administrativa assente em relações com altos cargos do Estado português, Francisco José Tenreiro acabaria por servir instituições ultramarinas, através de Adriano Moreira e entrar na Assembleia Nacional, a convite de Marcelo Caetano. Morreu cedo, pouco depois da eclosão da Guerra Colonial, e a sombra da sua cooptação pelo regime é, ainda hoje, um tema sensível.
Há dias, o espectro político da esquerda recebeu em choque o apoio político de Dino d'Santiago à candidatura presidencial de Luís Marques Mendes – uma candidatura inequivocamente comprometida com o histórico das políticas do PSD e com o atual governo. Convidado pelo candidato para assumir o papel de mandatário para a Cultura, Diversidade e Inclusão, Dino d’Santiago aceitou o convite, anunciando a sua decisão numa publicação nas redes sociais, ao lado do seu pai. O espanto vem, sobretudo, da incoerência entre a intervenção política do artista, associada à luta antirracista, anticolonial e de denúncia das desigualdades e injustiças sociais, e um apoio a um político que está intimamente ligado a opções políticas e ideológicas que promovem essas mesmas desigualdades e injustiças, com consequências diretas nas comunidades mais permeáveis à exploração, como o são as comunidades periféricas racializadas.
A incoerência é, de facto, espantosa, mas não deveria surpreender. Não é a primeira vez que personalidades ligadas ao universo da arte e da cultura dão o seu apoio a projetos políticos que representam o oposto da sua própria intervenção artística e de muitas causas com as quais se identificam. Assume-se que o artista é um intelectual estruturado e que o seu trabalho resulta da sua consciência política. Ao mesmo tempo, ignora-se que a génese da motivação artística pode ser apenas performativa, conquistando um espaço procurado mas não ocupado, ainda. Não que seja necessariamente o caso, mas esta é uma hipótese que devemos colocar quando nos deparamos com um objeto artístico ou de entretenimento com aparência de intervenção política. Ignora-se, também, a sociologia dos artistas. (...)»

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