terça-feira, 28 de agosto de 2018

RITA BLANCO | «Pensar que a Cristina Reis nunca mais faz um cenário, para mim é... não posso falar disso [emociona-se], é muito triste. E não entendo como é que as pessoas deixaram que isto acontecesse, como é que todo o espólio da Cornucópia, que é uma obra de arte, foi para Espanha, o que é que se passa connosco?»



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Mas continua a afirmar-se como uma mulher de esquerda?
Se dissermos que ser de esquerda, como dizia José Mário Branco, é não suportar o sofrimento dos outros, então eu sou. Nunca tive a pretensão de ser política, sou política na minha profissão, obviamente. E, por isso, muito triste. Por exemplo, acho extraordinário como é que um teatro como o da Cornucópia, que foi fundamental para o teatro em Portugal, no mundo, acabou e passou despercebido. Eu precisava da Cristina Reis, do Luís Miguel [Cintra], daquelas pessoas para me ultrapassar e agora não tenho como. Deixei de ter diálogo e fiquei doente. Pensar que a Cristina Reis nunca mais faz um cenário, para mim é... não posso falar disso [emociona-se], é muito triste. E não entendo como é que as pessoas deixaram que isto acontecesse, como é que todo o espólio da Cornucópia, que é uma obra de arte, foi para Espanha, o que é que se passa connosco? Por que é que nós não conseguimos gostar de nós. Nós temos pessoas extraordinárias, coisas extraordinárias e não nos defendemos uns aos outros. Agora podem dizer "a Cornucópia também decidiu acabar" e o que é que fizeram ao espólio, por exemplo? Por que não houve condições para aquilo continuar? Hoje em dia temos de fazer teatro com uma velocidade que não se coaduna com as necessidades artísticas. A cultura deixou de ser uma coisa interessante, é como ir à Feira Popular: vamos à Feira Popular, vamos despachar, vamos ali, comemos algodão-doce, já está, vamos para casa. Não aconteceu nada. Supostamente, a arte, primeiro, e a cultura servem para as pessoas pensarem, se questionarem, irem para casa mais cheias.
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Então o que precisa de fazer mais é teatro e cinema erudito?
Isso é fundamental, não pode haver só teatro ou cinema comercial. Não pode ser. Há imensos textos que são muito engraçados e que acho que se devem fazer, deve-se manter essa tradição de as pessoas irem ao teatro ver um espetáculo e verem representar, tudo isso, mas também tem de haver um outro espaço de pensamento. Eu, por exemplo, adoraria fazer um espetáculo em que vocês saíssem de lá e que isso vos questionasse, vos preocupasse, que vos fizesse pensar. Porque se fizer mais um texto agradável e em que está tudo feito para nós gostarmos, vamos para casa e pensamos apenas 'ah que giro, percebi tudo'. Estava já tudo mastigado. Não estou a dizer que o teatro tem de fazer que depois vocês vão para casa e se espanquem um ao outro, ou que deixem de dormir, mas o teatro tem essa função, pode ter essa função, o cinema pode ter também essa função. A arte definitivamente tem uma função de nos espantar. Não podemos ver um quadro da Paula Rego e ficar imunes, porque está ali a condição humana. E é disso que nós vivemos, da condição humana. Precisamos disso para nos reconhecermos uns aos outros, para nos podermos amar melhor, reconhecer na nossa falha. Todos nós falhamos constantemente, uns mais do que os outros. Quanto mais poder, mais falha. 
(...)»

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