quinta-feira, 6 de outubro de 2011

BILHETEIRA, REPORTÓRIO E MISSÃO ARTÍSTICA


Saiu ontem no Jornal Público.

Bilheteira, reportório e missão artística
É no mínimo inadequado que o actual Secretário de Estado da Cultura falando dos Teatros Nacionais refira apenas como questões relevantes a bilheteira e a programação – é entretanto estranho que o outro teatro – chamado independente -, desde Abril, e já antes, uma componente decisiva da democracia, não seja sequer objecto de discurso. A bilheteira obviamente é uma questão em qualquer sector, uma variável contabilística e a programação é uma noção algo imprópria quando aplicada a um Teatro Nacional (TEATRO E NACIONAL). Falemos antes de públicos, mesmo de espectadores, já que cada um é singular e de política de repertório, e aí encontraremos o cerne da questão se a estas duas questões associarmos uma terceira que é decisiva, o projecto e a liderança artísticos. Uma política de públicos significa a existência em qualquer Teatro Nacional de um forte serviço educativo, significa uma articulação com escolas – das básicas às universitárias, todos os patamares de ensino, no caso português, dada o facto de serem teatros únicos de uma rede de dois –, significa estar em cena seis meses com o Auto da Índia e permitir aos nonos anos de todo o país um encontro directo com Gil Vicente – é um exemplo básico, para entrar pelos olhos dentro e há muitas maneiras de o fazer, isto é, de os contactar e trazer e de criar o objecto.
Em Milão, nos tempos em que aí aprendi, O Temporal de Strindberg, com o maravilhoso Tino Carraro encenado por Strehler, esteve seis meses em cena de sala cheia – fora digressões e reposições, inúmeras e permanentes - entre outros processos pela via de um acordo com os sindicatos. E as dinâmicas de relação com os públicos, e com o cidadão espectador, podem seguir todos os caminhos, os organizados obviamente – o Teatro é uma escola de homens livres, disse alguém e ao teatro só vem quem quer, mesmo organizadamente – e pelas vias informativo/publicitárias. Não se “vende” Shakespeare como se vendem sapatos, mesmo que os serventuários da lógica espectacular digam isso, porque do que se trata não é de atrair enganando, mas de trazer pessoas esclarecendo desde logo informativamente, de criar as condições de uma representação emancipada e não as de um prolongar do entretenimento industrializado como fruição. O teatro é grego, o circo é romano. Nem tudo o que é útil e mental, sensível, inteligente, potencialidade cognitiva, tem de ser rendível e o retorno de bilheteira deste tipo de objectos, os objectos teatrais, é idêntico ao retorno de bilheteira de outro tipo de objectos sensíveis, de certos livros por exemplo. Mas não nos iludamos, Ricardo III já rendeu o que tinha a render – falando de contabilidade – nas infinitas versões e abordagens em que se apresentou no Mundo e na História. E será sempre uma criação dispendiosa. Ulisses, de Joyce, com todos os entraves conhecidos à sua publicação, já superou certamente os custos de edição. Beckett brincou sobre isso quando em A última bobina fez Krapp falar dos seis exemplares vendidos do outro lado do mar, um “estrondoso êxito” e era Beckett. Objectos teatrais como os que Kantor criou não têm direito de cidade porque nada têm a ver com o universo da bilheteira? Poderão apresentar-se num Nacional?
Não estou a defender nenhum tipo de irresponsabilidade na gestão deste tipo de casas nem de nenhum tipo de casa. O exemplo do desastre e da incompetência vem de cima e continua – a dívida soberana não é de todos nós, é uma irresponsabilidade dos sucessivos governos. Há muitas casas e empresas portuguesas que não vivem acima das possibilidades como se diz para aí. Há gente séria e há gestores competentes. Mas esses não são os que têm ocupado o aparelho de Estado nas últimas décadas. Um Teatro Nacional não tem de ter apenas público e sala cheia por ter como objectivo ter público e sala cheia. O primeiro objectivo é artístico, de política de reportórios e de culto da língua, do português por certo, e de outras línguas porque não? Para isso necessita de artistas actores e encenadores, dos que fazem e sabem fazer e são cultos de fazer e não de academia. Uma política de reportório é uma escolha artística, de uma equipa artística liderada por um criador normalmente – o exemplo é histórico: Strehler, Cheréau, Lassalle, Vitez, Langhoff, Brook, Muller, não serão a evidência do que digo? Uns dirigiram Teatros Nacionais, outros, estruturas do mesmo tipo – o Relatório Langhoff sobre a Comédie de Genéve explica bem o que digo. É assim na Europa a que aderimos. Entre nós o único exemplo que nos foi legado é Ricardo Pais. Um Teatro Nacional, ou um teatro apoiado pelo Estado que assuma realizar um Serviço Público Teatral – e só esses devem ser apoiados – deve obviamente materializar como política de reportório uma escolha coerente que faça convergir critério artístico e subjectivo do criador líder de equipa, qualidade histórica, literária e cénica dos materiais seleccionados, actualidade dinâmica das escolhas e potencialidade criativa específica, linguagens em experimentação – entretanto, nada mais actual do que aquilo que é anacrónico disse Agamben ao dizer que cavalgar a onda é ir com ela mas não observá-la e perceber o que a faz ser onda e para onde se dirige. É claro que um reportório é a base de um programa e é claro que um reportório se dirige à cidade e ao país e deve potenciar de todas as formas a inclusão da cidade e do país na sua própria vida. Isso significa no nosso caso salas cheias de vida própria, de públicos diversos, de digressões continuadas e nacionais, de intercâmbio lusófono e internacionalizado constante, da criação de uma verdadeira comunidade específica. Cada teatro é ele próprio um país e uma cultura. Para isso é necessária não só uma liderança artística consequente mas uma visão de Estado adulta e avessa a paternalismos tutores. O que não temos infelizmente tido.       
Fernando Mora Ramos   

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