sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Urbano Tavares Rodrigues


 
 
No meio da confusão que nos rodeia, faz-nos bem  ler e ouvir o que se está a escrever e a dizer sobre Urbano Tavares Rodrigues no momento em que nos deixa. Associemo-nos aos que lhe prestam homenagem, com o  último texto que escreveu para a revista EGOISTA «roubado daqui»:

As vozes da Natureza

A transparência do orvalho gemia no meu esquecimento de mim, tornava-me todo eu atenção ao saltitar das rãs amanhecendo na clara alegria do tanque grande.
O meu sangue cantava na ondulação das folhas da figueira.
Agora estou nascendo a toda a volta de mim no riso verde das searas, na brisa que se quebra contra a rude a
talaia, sobranceira ao rio com seu açude e seu moinho árabe, e sacode as franjas de silêncio nos altos choupos onde as cegonhas fazem ninho, nos pegos de eu nadar quando a Páscoa aquece as águas.
E ouço os meus segredos mais secretos no gemer das oliveiras e chaparros, meus tão íntimos parentes. E a ternura das sombras estende-se, para lá do rio e das suas narcejas, pelos ermos da Deveza de São Brás até ao Guadiana.
A frescura do silêncio cai um instante sobre as lavradas e as folhas onde o meu ser se recria.
Comecei muito cedo a ouvi-las, as vozes da natureza.
Conheço-as desde que tenho memória de mim. Depois houve a doença, que me impedia de sair do «monte» e, quando melhorei um pouco, conseguiram que eu fizesse a primeira comunhão, mas nunca acreditei naquele inferno que me pintavam e continuei a fugir de casa e embriagar-me de luz, a correr ao lado dos rebanhos de vacas e ovelhas nesse meu regresso à natureza, de que me sentia pertença.
Foram o azul profundo das noites estreladas e o que o vento e as nuvens diziam aos meus ouvidos que fizeram nascer em mim palavras que depois naturalmente começaram a escrever-se.
Da pobreza e do sofrimento dos trabalhadores que me rodeavam só mais tarde me apercebi e senti a necessidade de lhes dar voz por entre as vozes da natureza e pela estrada da vida fui andando com eles no pensamento e nos actos.
Nas ruas de Lisboa e de outras cidades onde não entra o sol de Inverno, tapado por altos edifícios, experimentei a saudade profunda dos descampados alentejanos, das vozes do rio e da tristeza dos homens, dos seus cantares. Levei-os comigo para França e para o mundo, para as aulas que dei e até para as prisões onde os meus ossos enregelaram.
O livro é palavra de combate, mesmo quando não parece sê-lo, se apenas nos mostra os homens nas suas fainas e penas.
Assim continuarei sempre a escutar as vozes da natureza e a dar delas notícia.

 

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