quinta-feira, 9 de outubro de 2014

«Salários, qualidade e missão cívica»


A ideia de que a qualidade da política tem um preço coloca a política no mesmo plano que qualquer mercadoria para não lhe dizer emprego – de empregado -, retirando-lhe aquilo que a constitui como actividade nobre: vocação solidária, espírito de missão e projecto, imaginação plano de um porvir possível e mais livre – um banqueiro pensa no seu banco, nos seus lucros, não tem de pensar na cidade, nem nos cidadãos, pensará quanto muito nos seus clientes.

É isso que faz um banqueiro pensando obviamente em primeiro lugar na sua própria riqueza privada, nas suas acções e investimentos, vemo-lo bem no planeta finanças – o primeiro mundo -, abundam exemplos. E fazem-no até à debacle final, são suicidas em matérias de posse, agarram-se como O avarento do Molière – mesmo que a paixão seja mais a proliferação incontinente do novo dinheiro que a paixão física do acumulado, mesmo que a maior parte observe nas casas e paredes privadas as telas dos pintores investimento como moeda de troca ao falar de cromatismos – o que olham é renda. Adoram o que têm em noites de celebração tribal familiar, entre traições intrigalhadas e copos de cristal, e perdem-se de êxtase libidinal passeando as mãos nas amealhadas notas antigas para não lhes esquecer o cheiro – é um apego às origens. Com o digital, paradoxalmente, foi-se essa sensualidade, o cartão de crédito é de um plástico quase imaterial pela vulgaridade, inexistente, puro meio tecnológico elementar, sem matéria nobre que o conforme.
O perfil do político que assume o seu serviço como missão é o perfil do político em democracia e é contraditado pelo outro, aquele que tem a ver com a produção, familiar e tradicional, fruto da estrutura desigual (herdeiros, deserdados e ascensionais, novos-ricos) de políticos para a política apenas como poder e como poder de se perpetuarem enquanto poder ao serviço de interesses próprios e de casta. Nos sistemas autoritários o poder é o desígnio, a todo o custo. E o instrumento da política é a polícia, a vigilância persecutória, a instauração institucional do medo como regime. Neste regime a economia é também uma arma de arremesso, uma forma de controlo político, através dos salários, da desvalorização do trabalho, do seu controlo de ritmos e intensidades, e do desemprego. A política é neste caso a construção do medo e contar com ele para avançar mais nos cortes e cola – na educação a lógica remendada atinge extremos.
Nos políticos da cidadania como projecto a ideia é um futuro melhor, para alguns que assim pensam, gradativo e um futuro diferente para outros, para quem defende mudanças radicais, o que implica ideias e projectos de concretização, pensamento social que integre um projecto de sociedade que valorize e sobreleve a cidade e os cidadãos, e controle o dinheiro, o mercado e o poder dos poderosos. Projectos são ideias articuladas numa finalidade, são integrações dinâmicas de acontecimentos a produzir. É por isso que se diz com frequência que tal político nem uma ideia tem, ou que um outro só tem as mesmas e que aquele que tem muito boas ideias não tem votos que as sustentem – é décor. 
Há um problema com as ideias: primeiro são escassas, isto é, não se desenvolve uma cultura de ideias porque os filtros mediáticos as torcem num mesmismo redutor e simplista, surgindo estas num espaço público permanentemente poluído idealmente, em segundo lugar os políticos pragmáticos aconselhados pelos marqueteiros insistem numa ideia única para fazer a diferença, isto é, para ganhar eleições ou perpetuarem o poder apostam na falta de ideia que está por detrás da ideia única – por exemplo, falando só de corrupção para nada fazer – em terceiro lugar o palavreado é de tal forma dominante no debate político que pelo excesso de discurso se matam as ideias que poderiam emergir, tal como uma planta pode morrer afogada – sim porque o debate seria importante pelo resultado imprevisível, não pré definido e não pelo confronto mecânico das mesmas posições. O nosso ambiente é saturado de narrativas que impedem a clareza e a existências de espaços de confronto de ideias. Seriam necessárias clareiras no meio da selva que tudo preenche - incluindo as clareiras.
Aqueles que defendem ideias como ideias, projecto potencial e acção planificada ou pura idealidade analítica, pensamento emergindo em acção, só as podem fazer caminhar alternativamente, em meios que fogem aos média dominantes, em ilhas de resistência, imaginando que estas possam tomar forma organizada em comunidades humanas em arquipélago – esta é a forma possível da política libertadora actual, a associação das formas de protesto que radicam em naturezas diferentes de rejeição deste sistema opressor que nos oprime, o mercado e o sistema do hipercontrolo massivo de consumo, formas que na rejeição do que está fundam as alternativas do que possa vir e de um porvir.
Quando o Presidente da República fala dos políticos como o seu preço falará de quê? De que melhoram por o salário ser mais alto? Nesse caso os melhores políticos seriam os mais bem pagos, porventura os chineses que são políticos-investidores ou os políticos da Arábia Saudita, ou mesmo os políticos que mais luvas recebem – esses têm salários altíssimos. E certamente os bancos seriam lugares de excelência qualificada de serviços, o que, temos visto, é uma mentira grossa. A incompetência grassa na banca como grassa no governo, sendo que no governo ela é um meio da política, da sua desvalorização. A desvalorização da política como ideia é um objectivo dos políticos que pensam a política como contas, como empresa. Estes querem valorizar a ideia de que a política é a gestão no momento em que a sua gestão é da maior incompetência. Os paradoxos estão hoje para além da possibilidade de se entenderem e o absurdo das situações – no ensino, na justiça, na saúde, na cultura – é procurado. Quanto pior está tudo mais fácil é impor o que querem, que é o saque, o esbulho, a pura barbárie decisionista como método generalizado – assim é nas escolas, nos tribunais, no poder, ninguém se confronta com o outro que pensa de outro modo, nem com qualquer tipo de crítica, é o pra-frentismo cego.
Há aqui uma evidente sobreposição do que é a política, um serviço público patriótico, com o que será uma técnica de governação pensando o Estado como uma máquina empresarial, uma tecnocracia. Aí, supostas competências, específicas, fundariam um princípio de eficácia da governação que seria mais técnico que político. Temos visto como isso é e funciona. Não só a ideia de que a técnica, a técnica financeira de governação, como uma espécie de extensão do que seriam princípios de ciência aplicáveis à sociedade, tem sido o falhanço rotundo, como a cientificidade dos propósitos resulta num afastamento das metas que negam a essa cientificidade qualquer rigor.
Em boa verdade, nestes anos, tudo falhou: a meta da dívida pública, os índices de desemprego versus emigração, o crescimento, a saída da crise, no essencial. As medidas para resolver a crise criaram mais crise e alimentam a sua perpetuidade. A crise é o negócio de uns tantos, essa é a visão objectiva – não lhe chamemos científica, claro, mas façamos contas reais: quem beneficiou com a crise? Os credores e os tais fundos tipo abutre, os mais agressivos, forças – estas sim, do mal - que agem no mundo dos fluxos financeiros à margem da democracia e estando-se nas tintas para ela. A própria existência da actividade creditícia nos termos em que existe é em si uma ameaça à democracia. Um país refém não é um país, é uma dívida, é um país com a corda ao pescoço, um suicida obrigado a sobreviver.
A confusão de Cavaco é total – ele pensa como um tecnocrata e portanto entende a política apenas como gestão, como apêndice de uma coisa chamada economia que se governa como gestão. O que é um apoucamento da política e uma ideia de administrador, de gestor. Temos visto como a saída de um país de doutores para um país de gestores tem sido um desastre.
O problema da qualidade da gestão ou do saber não está num absoluto dos seus exercícios considerados estes esferas autónomas, está nessa outra coisa que os pode animar e esclarecer e isso chama-se pensar – pois, é necessário, mais que pensar, saber pensar. E isso aprende-se de muitas formas, na escola e aprende-se praticando a inteligência na inteligência do que é sublime e excelente – Shakespeare, por exemplo – inteligência poética, ensaística e filosófica. E treina-se praticando a inteligência rica e complexa das escritas da arte e da ciência, sob outras diversas formas em que agem de forma indutora, inspiradora, coordenando pessoas, inventando projectos e calendários, planos e prazos, todas elas devedoras de contextos mais latos que os da gestão em sentido estrito ou os do ensino tout court.
É esse o problema, não haverá saída enquanto não se considerar que a tal qualificação - a imaginação treinada pelas linguagens da ficção artística e científica, e diria, pelas suas poéticas libertadoras - é fundadora da capacidade de governação. Este desígnio é devedor de uma verdadeira revolução cultural – de cultura – e de pensamento, de prática socializada do pensamento, aquele que se possa qualificar num espaço comum e que até se pode chamar nível de literacia generalizado – e opinião pública, não a publicada mas esta depois de lida e convertida em gestos – ninguém lê um jornal só para si, ou um livro, ou o que for. Ora, por cá, só assistimos ao culto do que é vulgar, como esta “ideia” do Presidente numa altura em que os salários dos outros cidadãos são cada vez mais miseráveis e o aumento do salário mínimo uma manobra tipo natal dos pobrezinhos.

Venham os bifes – carne barrosã - para todos.

Fernando Mora Ramos

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