A ideia de que a qualidade da política tem um preço coloca a
política no mesmo plano que qualquer mercadoria para não lhe dizer emprego – de
empregado -, retirando-lhe aquilo que a constitui como actividade nobre:
vocação solidária, espírito de missão e projecto, imaginação plano de um porvir
possível e mais livre – um banqueiro pensa no seu banco, nos seus lucros, não
tem de pensar na cidade, nem nos cidadãos, pensará quanto muito nos seus
clientes.
É isso que faz um banqueiro pensando obviamente em primeiro
lugar na sua própria riqueza privada, nas suas acções e investimentos, vemo-lo
bem no planeta finanças – o primeiro mundo -, abundam exemplos. E fazem-no até
à debacle final, são suicidas em matérias de posse, agarram-se como O avarento do Molière – mesmo que a
paixão seja mais a proliferação incontinente do novo dinheiro que a paixão
física do acumulado, mesmo que a maior parte observe nas casas e paredes
privadas as telas dos pintores investimento como moeda de troca ao falar de
cromatismos – o que olham é renda. Adoram o que têm em noites de celebração
tribal familiar, entre traições intrigalhadas e copos de cristal, e perdem-se
de êxtase libidinal passeando as mãos nas amealhadas notas antigas para não
lhes esquecer o cheiro – é um apego às origens. Com o digital, paradoxalmente,
foi-se essa sensualidade, o cartão de crédito é de um plástico quase imaterial
pela vulgaridade, inexistente, puro meio tecnológico elementar, sem matéria
nobre que o conforme.
O perfil do político que assume o seu serviço como missão é
o perfil do político em democracia e é contraditado pelo outro, aquele que tem
a ver com a produção, familiar e tradicional, fruto da estrutura desigual
(herdeiros, deserdados e ascensionais, novos-ricos) de políticos para a
política apenas como poder e como poder de se perpetuarem enquanto poder ao
serviço de interesses próprios e de casta. Nos sistemas autoritários o poder é
o desígnio, a todo o custo. E o instrumento da política é a polícia, a
vigilância persecutória, a instauração institucional do medo como regime. Neste
regime a economia é também uma arma de arremesso, uma forma de controlo
político, através dos salários, da desvalorização do trabalho, do seu controlo
de ritmos e intensidades, e do desemprego. A política é neste caso a construção
do medo e contar com ele para avançar mais nos cortes e cola – na educação a
lógica remendada atinge extremos.
Nos políticos da cidadania como projecto a ideia é um futuro
melhor, para alguns que assim pensam, gradativo e um futuro diferente para outros,
para quem defende mudanças radicais, o que implica ideias e projectos de
concretização, pensamento social que integre um projecto de sociedade que
valorize e sobreleve a cidade e os cidadãos, e controle o dinheiro, o mercado e
o poder dos poderosos. Projectos são ideias articuladas numa finalidade, são
integrações dinâmicas de acontecimentos a produzir. É por isso que se diz com
frequência que tal político nem uma ideia tem, ou que um outro só tem as mesmas
e que aquele que tem muito boas ideias não tem votos que as sustentem – é
décor.
Há um problema com as ideias: primeiro são escassas, isto é,
não se desenvolve uma cultura de ideias porque os filtros mediáticos as torcem
num mesmismo redutor e simplista, surgindo estas num espaço público permanentemente
poluído idealmente, em segundo lugar os políticos pragmáticos aconselhados
pelos marqueteiros insistem numa ideia única para fazer a diferença, isto é,
para ganhar eleições ou perpetuarem o poder apostam na falta de ideia que está
por detrás da ideia única – por exemplo, falando só de corrupção para nada
fazer – em terceiro lugar o palavreado é de tal forma dominante no debate
político que pelo excesso de discurso se matam as ideias que poderiam emergir,
tal como uma planta pode morrer afogada – sim porque o debate seria importante
pelo resultado imprevisível, não pré definido e não pelo confronto mecânico das
mesmas posições. O nosso ambiente é saturado de narrativas que impedem a
clareza e a existências de espaços de confronto de ideias. Seriam necessárias
clareiras no meio da selva que tudo preenche - incluindo as clareiras.
Aqueles que defendem ideias como ideias, projecto potencial
e acção planificada ou pura idealidade analítica, pensamento emergindo em
acção, só as podem fazer caminhar alternativamente, em meios que fogem aos
média dominantes, em ilhas de resistência, imaginando que estas possam tomar
forma organizada em comunidades humanas em arquipélago – esta é a forma
possível da política libertadora actual, a associação das formas de protesto
que radicam em naturezas diferentes de rejeição deste sistema opressor que nos
oprime, o mercado e o sistema do hipercontrolo massivo de consumo, formas que
na rejeição do que está fundam as alternativas do que possa vir e de um porvir.
Quando o Presidente da República fala dos políticos como o
seu preço falará de quê? De que melhoram por o salário ser mais alto? Nesse
caso os melhores políticos seriam os mais bem pagos, porventura os chineses que
são políticos-investidores ou os políticos da Arábia Saudita, ou mesmo os
políticos que mais luvas recebem – esses têm salários altíssimos. E certamente
os bancos seriam lugares de excelência qualificada de serviços, o que, temos
visto, é uma mentira grossa. A incompetência grassa na banca como grassa no
governo, sendo que no governo ela é um meio da política, da sua desvalorização.
A desvalorização da política como ideia é um objectivo dos políticos que pensam
a política como contas, como empresa. Estes querem valorizar a ideia de que a
política é a gestão no momento em que a sua gestão é da maior incompetência. Os
paradoxos estão hoje para além da possibilidade de se entenderem e o absurdo
das situações – no ensino, na justiça, na saúde, na cultura – é procurado.
Quanto pior está tudo mais fácil é impor o que querem, que é o saque, o
esbulho, a pura barbárie decisionista como método generalizado – assim é nas
escolas, nos tribunais, no poder, ninguém se confronta com o outro que pensa de
outro modo, nem com qualquer tipo de crítica, é o pra-frentismo cego.
Há aqui uma evidente sobreposição do que é a política, um
serviço público patriótico, com o que será uma técnica de governação pensando o
Estado como uma máquina empresarial, uma tecnocracia. Aí, supostas
competências, específicas, fundariam um princípio de eficácia da governação que
seria mais técnico que político. Temos visto como isso é e funciona. Não só a
ideia de que a técnica, a técnica financeira de governação, como uma espécie de
extensão do que seriam princípios de ciência aplicáveis à sociedade, tem sido o
falhanço rotundo, como a cientificidade dos propósitos resulta num afastamento
das metas que negam a essa cientificidade qualquer rigor.
Em boa verdade, nestes anos, tudo falhou: a meta da dívida
pública, os índices de desemprego versus emigração, o crescimento, a saída da
crise, no essencial. As medidas para resolver a crise criaram mais crise e
alimentam a sua perpetuidade. A crise é o negócio de uns tantos, essa é a visão
objectiva – não lhe chamemos científica, claro, mas façamos contas reais: quem
beneficiou com a crise? Os credores e os tais fundos tipo abutre, os mais
agressivos, forças – estas sim, do mal - que agem no mundo dos fluxos
financeiros à margem da democracia e estando-se nas tintas para ela. A própria
existência da actividade creditícia nos termos em que existe é em si uma ameaça
à democracia. Um país refém não é um país, é uma dívida, é um país com a corda
ao pescoço, um suicida obrigado a sobreviver.
A confusão de Cavaco é total – ele pensa como um tecnocrata
e portanto entende a política apenas como gestão, como apêndice de uma coisa
chamada economia que se governa como gestão. O que é um apoucamento da política
e uma ideia de administrador, de gestor. Temos visto como a saída de um país de
doutores para um país de gestores tem sido um desastre.
O problema da qualidade da gestão ou do saber não está num
absoluto dos seus exercícios considerados estes esferas autónomas, está nessa
outra coisa que os pode animar e esclarecer e isso chama-se pensar – pois, é
necessário, mais que pensar, saber pensar. E isso aprende-se de muitas formas,
na escola e aprende-se praticando a inteligência na inteligência do que é
sublime e excelente – Shakespeare, por exemplo – inteligência poética,
ensaística e filosófica. E treina-se praticando a inteligência rica e complexa
das escritas da arte e da ciência, sob outras diversas formas em que agem de
forma indutora, inspiradora, coordenando pessoas, inventando projectos e
calendários, planos e prazos, todas elas devedoras de contextos mais latos que
os da gestão em sentido estrito ou os do ensino tout court.
É esse o problema, não haverá saída enquanto não se
considerar que a tal qualificação - a imaginação treinada pelas linguagens da
ficção artística e científica, e diria, pelas suas poéticas libertadoras - é
fundadora da capacidade de governação. Este desígnio é devedor de uma
verdadeira revolução cultural – de cultura – e de pensamento, de prática
socializada do pensamento, aquele que se possa qualificar num espaço comum e
que até se pode chamar nível de literacia generalizado – e opinião pública, não
a publicada mas esta depois de lida e convertida em gestos – ninguém lê um
jornal só para si, ou um livro, ou o que for. Ora, por cá, só assistimos ao
culto do que é vulgar, como esta “ideia” do Presidente numa altura em que os
salários dos outros cidadãos são cada vez mais miseráveis e o aumento do
salário mínimo uma manobra tipo natal dos pobrezinhos.
Venham os bifes – carne barrosã - para todos.
Fernando Mora Ramos
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