«Camões é um poeta do Renascimento, de uma época de exaltação das realizações humanas face ao divino e ao obscurantismo, de um mundo em transição, no qual se vai formando um novo pensamento filosófico e científico, ligado à observação da natureza e à experiência, que as forças reaccionárias dessa altura, nomeadamente através da Inquisição, procuraram reprimir e conter» - afirma a nota do PCP sobre as comemorações.
Bem se pode dizer que é este todo o sentido desta obra notável do historiador (e poeta) António Borges Coelho e que, na sua essência, ela conflui com o lema das comemorações do PCP: «Camões, poeta do povo num mundo em mudança». Originalmente publicado em 1980, por ocasião do IV Centenário da morte de Camões, o livro está agora novamente à disposição dos leitores, revisitado pelo autor e enriquecido pelas ilustrações de Manuel San Payo».
Que “fraca humanidade”, como povo, teríamos, que memória colectiva nos fixaria a este chão solar e madrasto, que identidade, que língua falaríamos sem os poetas que cantaram e cantam os nossos gestos mais fecundos e justos, as andanças pelo mundo em busca de pão menos suado; as pelejas pelas rotas transoceânicas, orientes, oceanias, áfricas, granjeando escassa fortuna e muito sangue derramado; as lutas pela independência desde a fundação até 1383, que Fernão Lopes descreveu na Crónica de D. João I, modelar escultor da primeva língua, passando pelo lirismo arrebatado de Bernardim Ribeiro, pelas alucinadas viagens de Fernão Mendes Pinto; pelo supra-Camões que Pessoa quis ser, pela denúncia da barbárie fascista que se inscreve na pena corajosa dos nossos poeta neorrealistas, de Manuel da Fonseca a Carlos de Oliveira, de Joaquim Namorado a Armindo Rodrigues; o 25 de Abril de Ary dos Santos, de Manuel Gusmão, de Sophia, de Jorge de Sena. António Borges Coelho dá-nos a resposta nesta abordagem criteriosa e no diálogo que ao longo do ensaio estabelece com as mais impressivas passagens da épica camoniana, a começar nesse longo e modelar poema, que nos interroga: «Quem pode ser no mundo tão quieto», construído em oitavas, inscrevendo no poema a feição de modernidade discursiva, a agudeza singular, as virtualidades do idioma, na forma como Camões o utiliza para denunciar o alheamento das classes dominantes perante o desconcerto do mundo: Quem pode ser no mundo tão quieto,/ou quem terá tão livre o pensamento,/quem tão experimentado e tão discreto,/tão fora, enfim, de humano entendimento/que, ou com público efeito, ou com secreto,/lhe não revolva e espante o sentimento,/deixando-lhe o juízo quase incerto,/ver e notar do mundo o desconcerto?
Borges Coelho faz uma leitura nova e actuante de Os Lusíadas, investindo e sobrelevando as estrofes socialmente comprometidas da nossa obra maior e universal. É o Camões humano, defensor do povo miúdo, que tinha esperança que o país inquisidor, beato e miserável mudasse e com ele as vontades, Tomando sempre novas qualidades. Um país de todos e possível, que não apenas de um punhado de nobres, senhores de latifúndios feudais, vivendo de prebendas da Corte e da exploração escrava, à tripa forra, submetendo sem cuidados o povo miúdo à sua ambição de poder, à ganância e à vã cobiça.
Camões, mesmo acossado pela Inquisição, sobrelevando os seus métodos com subtil engenho e arte, não deixou de criticar, embora de forma velada, alguns dos que privavam na Corte de D. Sebastião: Vê que esses que frequentam os reais/Paços, por verdadeira e sã doutrina/Vendem adulação, que mal consente/Mondar-se o novo trigo florescente, e não deixou também, nesse incómodo Canto IX, que muito boa gente ainda olha de soslaio, de denunciar, nas estrofes 27 e 28, a relação cínica entre nobreza e povo, pendendo as leis sempre para o Rei, deixando o povo à míngua e à mercê de todos os ultrajes: Vê que aqueles que devem à pobreza/Amor divino, e ao povo caridade,/Amam somente mandos e riqueza,/Simulando justiça e integridade;/Da feia tirania e de aspereza/Fazem direito e vã severidade;/Leis em favor do Rei se estabelecem,/As em favor do povo só perecem.
No Texto Crítico, que acompanha cada período em análise de Os Lusíadas, escreve António Borges Coelho: «O verso camoniano louva e fustiga. Louva a coragem, os chefes que prevêem os perigos, os expertos peitos, os que sobem ao mando quase forçados. E fustiga: reis, nobres ineptos, filhos-família, padres ambiciosos e tirânicos.»
Que falta ainda nos faz este vigor, esta superior forma de afirmação da língua e da justiça, a clareza e a coragem deste verbo. Para os que questionam a importância de ler hoje Os Lusíadas, a interpretação crítica que dele nos dá Borges Coelho é adequada resposta».