domingo, 1 de setembro de 2013

CINEMATECA, PATRIMÓNIO E CRIAÇÃO



Publicado no jornal Público de 30 de agosto de 2013.

Cinemateca, património e criação
A paralisia iminente da Cinemateca, agora revelada mas há muito conhecido, é um problema comum às áreas artísticas como resultado da aplicação de uma política apenas de cortes e orçamental que, na cultura, tem sido e é destrutiva. Há outras formas de fazer política cultural, uma nova fiscalidade específica, um novo mecenato, uma clara definição do que é o Serviço Público e suas articulações programáticas com as entidades de criação sem fins lucrativos, um programa vasto de reforma do sector público que não apenas a de um falso controlo da despesa - sempre que na gestão destas coisas inventam a pólvora concentrando administrações, gastam mais com medidas que só complicam (despesismo) o que funcionava simples e coerente.
Não existe política cultural porque não existe Ministério. Essa inexistência é, em si, a política – o mais ridículo é não existir Secretaria de Estado, havendo um Secretário de Estado junto ao Primeiro-Ministro (sem acesso ao Conselho) sinal que se exibe como uma distinção operativa mas que não é mais que um adorno. Assim como se criou o Ministério, e chegou mesmo a existir porque tinha um programa, assim se destruiu, transformando-se o que foi identificado como áreas de responsabilidade, programa, em gestão diária e casuística do que emerge como problemático: um dia o Comendador Berardo, outro dia a Cinemateca, num outro, o Museu dos Coches, todos os dias o património em estado de abandono, anualmente as capitais europeias a descapitalizarem no dia seguinte ao do prazo oficial de vida, e de modo mais invisível, a vida cultural e artística dos interiores: as pequenas estruturas de criação, teatros e museus, festivais e programações regulares não comerciais que transformavam o pouco que recebiam no muito que davam a conhecer e fruir, criando vida onde o Estado só desertifica, sufocam.
O projecto deste governo começou pela subalternização das disciplinas culturais e artísticas enquanto componentes estruturantes da democracia – uma invenção saída das cinzas no pós-guerra - na medida em que a inexistência do Ministério significa não só o desprezo pela cultura como qualificação da democracia, mas também pelo seu papel económico – contra as evidências estatísticas recentes que, aliás, são apenas enfeite de situações mundano-políticas. Considera-se que as actividades artísticas, numa leitura mecânica, são anti mercado, isto é, despesa não lucrativa, a famosa subsidiodependência – é o que chamam ao Teatro Aberto, à Cornucópia, à Paula Rego e à sua Casa das Histórias (Fundação), ao projecto violentado de Maria João Pires em Belgais (o problema já era este e por isso refiro-o), e a tudo o que não seja lucro imediato (de cortar a torto e a direito) ou especulação financeira potencial (o jogo viciante dos capitais de risco ou os negócios na esfera público-privada), à excepção, não comprovada por uma política consequente mas com estatuto no discurso “responsável”, do património que, aliás, há que valorizar - que tombo sem a Torre do Tombo, e que seria se a outra torre, em Belém, fosse a discoteca ou o restaurante falados, assim à Berlusconi, esse farol quase lusitano?
A recolocação da colecção Berardo como problema mostra a predilecção pelo elefante branco (desde o princípio que deveria ter tido sede própria e autonomia, reconhecido o interesse do Estado no mérito público da colecção) e só vem comprovar que tudo o que se faz se desfaz e que o fazer do que levou anos a construir (estruturante da democracia, como é o caso da Cinemateca e do trabalho notável de João Benard da Costa), não tem, para este poder, nenhum valor: a sua democracia coincide com o desaparecimento do Estado democrático, a sua redução a funções repressivas e a facilitação do exercício de um poder absoluto pelos mercados sem controlo legal (a ideia do Estado empresa é isso mesmo). Como disse um Ministro há pouco, o Estado quer desamparar a loja. A loja é toda para o homem de novo tipo, o empreendedor, o empresário de visão, o investidor, o criador de produtos transacionáveis... Para o Estado fica a actividade não lucrativa, assim se controla a dívida, aliás o Estado não necessita de redistribuir a riqueza comum, os privados, é sabido, fazem isso melhor...
Ao longo dos anos o Estado, mal governado pelos então já poderosos gestores (o Dr. Cavaco é o exemplo acabado, o “país de doutores” foi-se com o papel selado) parece vocacionado para possuir uma infindável colecção de elefantes brancos (não estão em vias de extinção) e de cada vez que faz uma obra (CCB, Museu dos Coches agora, e tantos exemplos no interior do país) não acautela que à obra corresponda um programa – em Portugal a decisão começa na obra, depois inventa-se o programa, o que faz com que grandes logísticas iniciem a sua “morte física” (morrem do que são) no dia seguinte às inaugurações, na medida em que não há modos úteis de as habitar, vida própria como programa. Os exemplos abundam e a dança dos edifícios não é muito distinta da que gerou autoestradas (de programa fácil e falhado) em que viajamos solitariamente, ou da dos estádios de futebol… – imaginam a Igreja a multiplicar Santuários de Fátima? 
O que resta da administração pública da cultura tem como função tirar o Estado das suas responsabilidades culturais democráticas, sejam patrimoniais, sejam nos domínios da criação – uma das invenções do pós-guerra foi a inclusão da cultura e dos patrimónios nas funções programáticas do Estado democrático como resposta à barbárie nazi. A memória de um país, seja a pedra, sejam imagens, pintura, escultura ou cinema, teatro e as criações artísticas contemporâneas, não é uma questão do Estado se o governo não concebe a cultura como um programa político na medida das consignas constitucionais do acesso à criação e fruição culturais. Mas não o fazer é, desde logo, desqualificar a democracia, impedindo as maiorias (e minorias) de aceder a formas de liberdade pública que as linguagens das artes são enquanto conteúdos da liberdade artística e da própria liberdade, o que só poderá acontecer com o reconhecimento íntegro da cidadania artística. A desqualificação da democracia e o seu empobrecimento é o desígnio de uma política que destrói o fenómeno cultural, identificada tão só com a redução da despesa pública. Para as “elites novo-ricas” e para os velhos ricos de sempre, trata-se de garantirem a operacionalidade do sistema que estrutura a desigualdade, agora mais funda, protegendo os seus interesses contra o interesse de todos e os direitos universais. O orçamento, um qualquer, é estruturante da economia, a economia será, ou não, estruturante da democracia. Democracia é uma palavra prostituída, tão usado é pelos seus inimigos. Ao que parece economia, por via de um culto que a celebra como um totem verbal, não. É o tabu que faz o totem pela repetição – “é a economia, estúpido”, diz-se e a realidade submetesse-lhe, como se a economia fosse um projecto inevitavelmente antidemocrático: é o caso da austeridade, esse modo de concentração da riqueza nos especuladores e da redistribuição da miséria, no lugar da riqueza, através do desaparecimento das funções democráticas do estado, pela maioria da população».
fernando mora ramos

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