TEATRO MUNICIPAL DA GUARDA (TMG)
A não renovação de contrato do
Director Artístico deste Teatro, Américo Rodrigues, equivale a um despedimento.
Sublinho Director Artístico porque creio que o busílis aí reside. Quando há
dimensão artística no delinear dos programas estes não são só na óptica do
consumo, dos públicos-alvo (que expressão imbecil) e todos sabemos que teremos
de atrair por criar algo próprio e não por andar sempre a comer de fora aquilo
que muitas vezes lá fora é mais que requentado – requentado e não requintado.
Conheço o trabalho do Américo porque desde muito antes da existência do
edifício do TMG, na Guarda, lá íamos apresentando os espectáculos criados em
Évora e nas Caldas – CCE, CENDREV e depois Teratro da Rainha (desde 1975).
Nessa altura o Capitalismo Cultural era inexistente, as estruturas de criação
casos isolados num mapa nacional que continuava um deserto cultural e na guarda
um núcleo de animação já fazia os seus programas entre a criação teatral e uma
programação para as condições precárias de então. Todos sabemos que a tese de um
desenvolvimento cultural, e fundamentalmente artístico, assente no isolamento
de cada ilha de um arquipélago inexistente, não colhe frutos no prazo que
geraria um futuro mais laico e rico de possibilidades para todos e cada um, era
necessário articular convergências – tudo isto antes da Europa. A sociedade a
construir deveria obviamente ser aquela que as lições da história contém, não
só evitando o regresso de totalitarismos reconhecíveis na essência, embora
plenos agora de marketing político e comércio de imagem diariamente renascida,
como oferecendo condições de dignidade a todos os cidadãos, os que vivem no
centro do centro da capital e tendencialmente idênticas para os que vivem no
centro do centro da periferia mais afastada. Era isso que se tentava nessas
primeiras periferias. A globalização ainda era uma criança na actual forma
internética.
E na Guarda apresentámos muitas
vezes, antes do edifício TMG, espectáculos no Jardim público, no auditório
rudimentar da autarquia, sempre aquele problema do pé-direito. E com o pé
esquerdo entrou o Américo na concepção e invenção cuidados do edifício TMG,
desde a primeira hora. A ele, e certamente a outros, se deve a existência do
colosso cultural, do objecto arquitectónico esplêndido. Já lá estive em cena
três vezes e sei do que falo. O TMG era um objecto particular com uma
programação particular. Na realidade o Director Artístico, desde a primeira
hora, ao imaginar o edifício e falar com o arquitecto, imaginou um modo de
habitá-lo, o que é raro. A maior parte dos teatros desta geração última, de
sofisticada arquitectura exterior/interior e tecnologias da cena, foram
construídos sem modelo de actividade futura, sem sujeito prospectivo e
inquilino criativo previsto – os dinheiros comandaram. Foram a avalancha de dinheiros
europeus que os inventou. Na maior parte dos casos imagina-se que um director,
um “controleiro”, um homem de mão do autarca, serve as vezes de um inventor de
vida cultural própria – criar vida artística, políticas de gosto, numa cidade,
não é o mesmo que escolher de tudo um pouco e passar por diverso, na tal
oferta, isso é mais próprio da lógica do Natal e mete chocolates. As
programações destes edifícios, de serviço público inscrito no código genético,
oscilam entre a sociedade recreativa, o Lago
dos Cisnes, o “dernier cri” performativo, uns filmes escolhidos por um tipo
amigo da capital, uns jazzes mornos quase à beira do espírito Martini e uns
êxitos televisivos transpostos para a terrinha – coisa que um qualquer
consumidor menos que médio de “cultura” consegue somar. Nalguns casos a coisa é
mesmo obscena, o mais revisteiro e de mau gosto imaginável, tipo
“Estacionâncios e punhetaços”, do género, com a sigla TVI ou congénere. Sem
dimensão mediática, maior ou menor, nada existe aliás, o direito de cidade,
artístico, não é especificamente artístico, é antes mediático. Não se trata das
obras, trata-se da visibilidade do embrulho e da celebridade dos protagonismos,
como dizem, dos protagonismos principais – ora aí estamos.
O Américo desde o princípio que
imaginou diferente, com independência e sem cedências populistas. Com
cosmopolitismo ligou-se à rede de teatros de Leão e Castela e com faro para a
dimensão popular da cultura local promoveu realizações com as populações,
envolvendo-as na experiência artística. Além disso desenvolveu o ProJéctil,
para a realização de criações residentes e foi fazendo uma programação acertada
entre um certo desejo de aceder ao que nos grandes centros se produzia, em
razão de escala e diversidade e uma forte componente de realizações local, tudo
feito numa auscultação cuidada da cidade. O problema destes edifícios não é a
programação, o que qualquer um faz numa lógica acumuladora, é somar coisas e
dar-lhe um nome com vocação publicitária – longe obviamente do talento de O’Neil,
esse era poeta. O problema é a dinâmica entre a dimensão criativa residente e
os acolhimentos estratégicos, o diálogo do dentro com o fora e com o dentro.
Quando não há dentro nada a fazer, é como um corpo sem desejo nem ideias,
surfando o clima do que dá: a inércia tem grandes virtudes e muitos começam
logo cadáveres a procriar, nada mais fácil que estar morto numa vida que não
sofre mudanças positivas e regride - agora como finalidade. O Américo é de
facto um artista, um poeta apaixonado pela experiência da poesia sonora e por
um certo jogo plástico com a palavra, escreve, faz sons, é homem de teatro,
criou o Aquilo, a raiz do movimento cultural actual na Guarda. É de facto um
artista enquanto Director. Não é, nem foi, um homem de mão do autarca. Este é o
problema. O actual Presidente sabe bem como apetece - todos sabem, é mesmo o
que sabem sobre estas matérias - em termos eleitorais futuros e de promoção
constante do feito autárquico, um edifício deste tipo. Ora não lhe convinha que
lá estivesse um artista, certamente escolherá um comissário programador.
Fernando Mora Ramos
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