domingo, 10 de novembro de 2013

«RESISTÊNCIA»


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RESISTÊNCIA

A palavra sempre contém a eternidade possível. A vida, como sabemos, tem entretanto um tempo limitado e dizer sempre, até sempre, para sempre, é explicitar um desejo impossível de superação do tempo que, contra todas as evidências, não deixamos de afirmar, expressando esse impossível – que gesto mais revolucionário que esse de tentar materializar o espectro que nos ronda, e rondará, potencialidade de sociedade comunista sempre, fantasma a converter em sociedade de carne e osso, sociedade do poder administrador do que é comum entre iguais diferentes contra a ideia do cada um por si, da esfera do privado como um horizonte, do lucro do capitalista e da expropriação privada do que é de todos, sociedade da justiça contra as teias burocrático-legais do jurídico que regra a desigualdade estruturante?
Permanecer, nesse tempo que nos calhou viver, ligado sempre a uma ideia nova, a ideia comunista, assinalados necessariamente hoje os seus desaires e monstruosidades – na Coreia do Norte o exemplo vivo da aberração dinástica, no desprezo do que seja essa comunidade sem classes por vir – para que o seu valor se reerga como impossibilidade possível, de novo, e combater por ela em todos os tempos que a história foi gerando e em todas as frentes, é admirável.
Dizia Brecht que há muitos tipos de homens resistentes, mas que os imprescindíveis sempre eram raros por não desistirem, por resistirem sempre. Eram, por isso mesmo, imprescindíveis. Voltavam sempre ao “motivo do crime” para nele semearem, insistentemente e sob forma nova no tempo refeita, o seu modo de ver, a sua visão e isso para além dos limites físicos, como sabemos, pela história do chamado “segredo”, essa tortura do isolamento total, de uma separação total do mundo dos vivos, experiência tumular e pela extraordinária fuga da prisão/forte de Peniche.
Não sou dado a mitificações e o Álvaro Cunhal combatia, como sabemos, o culto da personalidade e exercitava uma reserva solidária no estilo, era alguém que se dizia revolucionário profissional e evitava entretenimentos fabulares em torno da vida pessoal, o que, em boa verdade, espicaçou em muitos o desejo contrário. Era um homem invulgar, uma figura absoluta de resistência, de insistência determinada no combate e consistência nas razões e visões desse combate. Estive perto dele algumas vezes, numa reunião, acerca das possibilidades do teatro no Alentejo, ali por 75, reunião em que ele anotou num caderninho escolar o que íamos dizendo acerca dos preconceitos que existiam, na Lisboa centralista, relativamente ao lançamento de uma actividade artística numa região deserta de cultura artística. E lembro-me da primeira digressão alentejana por terras da Reforma Agrária. Um aperto de mão inacreditável de firmeza e uma mão ampla. Detalhes, mas no detalhe está também um sinal do conjunto dos comportamentos. E o que mais me seduz, nessa viagem agora em direcção ao passado com os olhos virados para a frente – e nunca o capitalismo esteve tão agressivo e radicalizado na sua vocação antidemocrática e anti-liberdades, anti-humana e anti-comunitária, de 45 para cá, capaz de sujeitar a humanidade a um apocalipse - é pensar a diversidade das formas dessa resistência: a tese de licenciatura sobre o aborto, os ensaios sobre a estética, a tradução do Rei Lear, o livrinho sobre as lutas de classes na idade média, o interessante “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”, a questão agrária, os magníficos desenhos, etc. Essa diversidade, mantida na sua coerência interna uma unidade de pensamento aberta à possibilidade de um novo não pré feito, é algo de facto único. Poucos dirigentes foram assim feitos de tanto vário e de, nessa multiplicidade de interesses, plasmarem o ser - talvez Gramsci, estranhamente pouco amado para além de Itália, seja adequado referir aqui. Essa multiplicidade constitutiva da acção e interesses é um sinal que muitos deveriam seguir, atentos. A vida não é o caminho estreito de um combate feito nos carris de uma contrarresposta mecânica, a vida é a multiplicidade das formas da sua existência e não devemos apequená-la, o combate é múltiplo e muito mais complexo que a sua redução a uma agenda contraposta da do inimigo. Hoje é muito óbvio que a resposta taco a taco, no plano da arena mediática, é um empobrecimento e uma redução do universo da política ao próximo clichê possível.  
Esta é a minha herança de Álvaro Cunhal, uma herança assente numa multiplicidade também dos contextos da práxis política, desde os tempos do Socorro Vermelho aos de ministro de Estado sem pasta nos primeiro Governos pós Abril, mas cuja determinante é justamente a da riqueza da diversidade dos contributos, com uma grande incidência nas práticas artísticas que, insisto, não devem ser entendidas como coisa secundária, nem apenas como algo próprio de alguém excepcional, mas como horizonte prático de todos nesse comum por vir que se deve gerar todos os dias numa óptica real de mudança.
O que explica o interesse pelo Rei Lear, uma tragédia sobre a problemática da herança – questão central e ligada à lógica essencial e vital da continuidade do projecto de vida em simbiose com o projecto ideal- em que, Cordélia, a herdeira mais dedicada, é posta de lado por lhe faltar o “teatro de afectos” suficiente para enganar o Rei, como fazem as duas irmãs mais velhas? 
Imagino quanto não terá sido difícil, muitas vezes, ver largo no apertado caminho possível de uma luta de classes conduzida no espaço restrito da clandestinidade, esse espaço sem liberdade e sem, por assim dizer, possibilidade de informação abrangente e referencial livres, e gosto de pensar nessa extraordinária forma de resistência que é a escrita, o estudo e até um invulgar trabalho de tradução de Shakespeare num universo prisional. É de facto uma capacidade limite e uma atenção à especificidade do que é a arte como característica essencial do humano.
Álvaro Cunhal terá dito a Petrova, filha de um dirigente soviético, acerca da experiência prisional: “Isolado, separado dos seus camaradas, o homem não sabe se conseguirá ainda alguma vez na vida sair à rua, sentar-se num banco, recostar a cabeça, olhar o céu enorme.” Nada mais claro que esta confissão de fragilidade, só um grande resistente a faria.  


 

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