quinta-feira, 9 de setembro de 2021

TEATRO | «UM GAJO NUNCA MAIS É A MESMA COISA»| «(...) dá voz aos rapazes que foram mandados para África para combater outros rapazes, e que agora entram na fase derradeira das suas vidas. Apesar de se basear em relatos reais, é ficção. E, sendo ficção, poderá mais livremente interpelar a História - e contribuir para a compreensão de um tempo difícil de imaginar para aqueles que já nasceram em liberdade»| SETEMBRO 2021 | 10 | 11 | 12 | TEATRO DO BAIRRO | LISBOA

 


Um gajo nunca mais é a mesma coisa

 

«Dá voz aos rapazes que foram mandados para África para combater outros rapazes, e que agora entram na fase derradeira das suas vidas. Apesar de se basear em relatos reais, é ficção. E, sendo ficção, poderá mais livremente interpelar a História - e contribuir para a compreensão de um tempo difícil de imaginar para aqueles que já nasceram em liberdade.

Texto e encenação de Rodrigo Francisco; Intérpretes: Afonso de Portugal, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter e Lara Mesquita; Cenografia: Céline Demars; Figurinos: Ana Paula Rocha; Luz: Guilherme Frazão; Música: Afonso de Portugal. Agradecimento: Exército Português. Agradecimento especial: Alexandre Pinheiro, Manuel Mendonça, José Vieira Casal. Co-produção: ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve e Companhia de Teatro de Almada». Saiba mais.

 

 

 

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A propósito do espectáculo, da entrevista de Rodrigo Francisco a Vítor Gonçalves para o jornal i,  a que se refere a imagem acima:

«(...)

VG- Falemos do texto que escreveste sobre a guerra colonial e a partir do qual fizeste o espectáculo, ‘ Um gajo nunca mais é a mesma coisa’. Por que é que o centro da comunicação visual do espectáculo – o cartaz – é um soldado negro?
RF-
 Porque sempre me irritou muito que as pessoas falem sobre a guerra colonial como um fenómeno de base racial. Não o é. Acho que essas pessoas ignoram que, por exemplo, na Guiné, nos anos 70, cerca de 70 por cento dos combatentes do lado português eram negros. Tentar reduzir esse conflito a um confronto entre brancos e negros é ignorar toda a complexidade desse acontecimento.

VG- Sim, leva o conflito para o campo racial, onde de facto nunca se situou.
RF-
 Por outro lado, nunca esqueçamos o abandono a que foram votados os combatentes africanos, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974…

VG- Abandono e morte.
RF-
 Alguns foram fuzilados, outros conseguiram escapar e sobreviver, mas enfrentam o opróbrio. Houve a recente polémica sobre o Marcelino da Mata. Ainda não tínhamos começado os ensaios nessa altura. Irritou-me profundamente o reducionismo mental a que se assistiu nesse debate. Ouvir pessoas cujo único objectivo era encaixar a realidade e os combatentes nos seus parâmetros pré- definidos, que aprenderam a pressa e se afadigam a repetir.

VG- Por isso colocas o soldado negro no centro da comunicação.
RF-
 Exacto. Houve vítimas, houve criminosos. Houve vítimas que foram criminosos e vice-versa. A realidade é sempre muito mais complexa do que os sistemas dicotómicos em que a queremos encaixar, de modo a que caibam no facebook. Parece que hoje tudo se reduz ao gosto/ não gosto.

VG- Dizias noutro dia que é como se a realidade fosse produzida pela Disney.
RF-
 Sim, uma ‘disneyficação’ do real – uns brancos mauzões, que foram matar uns negros bonzinhos.

VG- Nem no discurso oficial sobre a guerra colonial, em Moçambique, existe uma dicotomia desse teor.
RF-
 É ignorar tudo. O contexto de guerra fria em que se vivia. Nunca dizem que os movimentos de libertação eram apoiados ou pela URSS, pela China e Cuba ou pelos EUA.

É preciso estudar os factos com alguma profundidade, antes de opinar sobre o assunto e classificar as pessoas envolvidas.

VG- Mas não parece haver um grande desejo de realmente debater o assunto na sociedade portuguesa.
RF-
 Eu nasci em 1981. Não sabia nada dessa guerra, como ninguém da minha geração sabe. É absurdo, houve quase um milhão de combatentes. Se considerarmos as suas famílias e mesmo que contabilizemos apenas um filho por casal, compreendemos que a guerra terá tocado directamente cerca de três milhões de portugueses…

VG- E, em 1974 existiam em Portugal nove milhões de pessoas. A guerra terá assumido um impacto directo em cerca de um terço da população.
RF-
 Claro. Algo que tem um peso enorme na nossa sociedade e que foi completamente silenciado. Percebemos que os militares que fizeram a guerra foram – uma parte significativa deles – os mesmos que fizeram o 25 de Abril. E a mesma instituição. Não seriam seguramente eles que iam começar por sublinhar o que tinha corrido mal. Repara, um homem, um militar, que vai para uma das frentes da guerra colonial, em 72 ou 73, parte como um herói e regressa um ano ou dois depois como um assassino fascista. É uma reviravolta dramática.

VG- O texto foi construído a partir de testemunho directos. Muitos dos episódios presentes no espectáculo partem de factos reais.
RF-
 É verdade. O episódio da revolta de Alcoitão, por exemplo, ilustra de uma forma aguda o que estava a dizer. Os militares internados – alguns deles amputados de braços e pernas – decidem revoltar-se contra os terapeutas, que subitamente passam a chamar fascistas aos homens a quem na véspera tratavam.

VG- O que me agradou no teu texto e no espectáculo foi o facto de o libertares de duas coisas – da ideologia e do politicamente correcto. De um discurso ideológico catalogador e generalista, que ignora em absoluto o indivíduo e as circunstâncias concretas de cada homem, desprezando essas pessoas, tornando-as apenas em ferramentas de um sistema. E daqueles que, independentemente do ponto de vista ideológico que adoptam, ou mesmo não tendo nenhum, se dedicam à obscena tentativa de olhar esse período com o conforto e a sobranceria que a democracia nos proporciona

RF- Grande parte dos homens que iam para a guerra em África eram semi-analfabetos. Não tinham escolha.

VG- Rodrigo, no entanto tu fazes a peça para um público que – arrisco dizer – partilhará, uma visão ideológica sobre a guerra. Ou, pelo menos muitos dos espectadores o farão. A tua intenção, com o espectáculo, é contrariar essa visão, ou não queres saber disso para nada?
RF-
 Não quera saber disso. Eventualmente, pretendo mostrar o conflito existente hoje na sociedade portuguesa sobre este assunto. Agora, a minha posição sobre a questão não a digo no espectáculo. Guardo-a para mim. Coloco em cena duas posições opostas e cristalizadas sobre a questão, não a minha. O importante é que o conflito que existe na sociedade portuguesa seja identificado e se reflicta sobre ele, que haja discussão. Cito o Woody Allen:’ Se tivesse uma mensagem não fazia uma peça, escrevia uma carta’. O espectáculo não propõe nenhuma solução, nenhuma síntese, pretende antes abordar o conflito.

VG- E entre os actores? Há o mesmo tipo de posições extremadas que vemos no espectáculo?
RF-
 Os actores dividiam-se entre os dois pontos de vista opostos que são apresentados. Esse conflito interno também passa para a cena. Não deixa de me espantar que haja espectadores que, quando vão ver um espectáculo, estejam à procura de respostas. Esperam que lhes seja servida uma solução. Que a assumam como sua e transformem esses espectáculos em bandeiras. Penso que isso é por o teatro ao serviço de causas alheias a arte.

VG- Quando entrevistei um conjunto de combatentes da FRELIMO, em Moçambique, que lutaram contra as tropas portuguesas, encontrei um sentimento que perpassava todos os testemunhos: aqueles foram os tempos. Aquilo tinha significado, participei em algo que valeu a pena, que mudou a história. Mas há uma diferença – aqueles homens sentiram-se vitoriosos, ganharam um país.
No entanto, pareceu-me ouvir-te comentar que encontraste entre os combatentes portugueses sentimentos análogos?
RF-
 Pois foi. Eu participei num almoço comemorativo do cinquentenário da partida de um batalhão para África. Fui anonimamente. A dada altura perguntei a um senhor: ‘preferia ter ido a guerra, ou nunca ter posto lá os pés?’ E a resposta foi que ele tinha preferido ir à guerra. Para muitos destes homens foi a coisa mais importante, seguramente a mais marcante, que lhes aconteceu nas suas vidas. E, depois, há uma coisa: eles eram todos novos, portugueses ou africanos. (…)». Leia mais.

 

 

Ah, depois o Espectáculo estará em ALMADA:

 

 

 

 

 

   


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