Um gajo nunca mais é a mesma coisa
«Dá voz aos rapazes que foram mandados para África para combater outros rapazes, e que agora entram na fase derradeira das suas vidas. Apesar de se basear em relatos reais, é ficção. E, sendo ficção, poderá mais livremente interpelar a História - e contribuir para a compreensão de um tempo difícil de imaginar para aqueles que já nasceram em liberdade.
Texto e encenação de Rodrigo Francisco; Intérpretes: Afonso de Portugal, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter e Lara Mesquita; Cenografia: Céline Demars; Figurinos: Ana Paula Rocha; Luz: Guilherme Frazão; Música: Afonso de Portugal. Agradecimento: Exército Português. Agradecimento especial: Alexandre Pinheiro, Manuel Mendonça, José Vieira Casal. Co-produção: ACTA – A Companhia de Teatro do Algarve e Companhia de Teatro de Almada». Saiba mais.
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A propósito do espectáculo, da entrevista de Rodrigo Francisco a Vítor Gonçalves para o jornal i, a que se refere a imagem acima:
«(...)
VG- Falemos do texto que
escreveste sobre a guerra colonial e a partir do qual fizeste o espectáculo, ‘
Um gajo nunca mais é a mesma coisa’. Por que é que o centro da comunicação
visual do espectáculo – o cartaz – é um soldado negro?
RF- Porque sempre me irritou muito que as pessoas falem sobre
a guerra colonial como um fenómeno de base racial. Não o é. Acho que essas
pessoas ignoram que, por exemplo, na Guiné, nos anos 70, cerca de 70 por cento
dos combatentes do lado português eram negros. Tentar reduzir esse conflito a
um confronto entre brancos e negros é ignorar toda a complexidade desse
acontecimento.
VG- Sim, leva o conflito para o
campo racial, onde de facto nunca se situou.
RF- Por outro lado, nunca esqueçamos o abandono a que foram
votados os combatentes africanos, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974…
VG- Abandono e morte.
RF- Alguns foram fuzilados, outros conseguiram escapar e
sobreviver, mas enfrentam o opróbrio. Houve a recente polémica sobre o
Marcelino da Mata. Ainda não tínhamos começado os ensaios nessa altura.
Irritou-me profundamente o reducionismo mental a que se assistiu nesse debate.
Ouvir pessoas cujo único objectivo era encaixar a realidade e os combatentes
nos seus parâmetros pré- definidos, que aprenderam a pressa e se afadigam a
repetir.
VG- Por isso colocas o soldado
negro no centro da comunicação.
RF- Exacto. Houve vítimas, houve criminosos. Houve vítimas que
foram criminosos e vice-versa. A realidade é sempre muito mais complexa do que
os sistemas dicotómicos em que a queremos encaixar, de modo a que caibam no
facebook. Parece que hoje tudo se reduz ao gosto/ não gosto.
VG- Dizias noutro dia que é
como se a realidade fosse produzida pela Disney.
RF- Sim, uma ‘disneyficação’ do real – uns brancos mauzões,
que foram matar uns negros bonzinhos.
VG- Nem no discurso oficial
sobre a guerra colonial, em Moçambique, existe uma dicotomia desse teor.
RF- É ignorar tudo. O contexto de guerra fria em que se vivia.
Nunca dizem que os movimentos de libertação eram apoiados ou pela URSS, pela
China e Cuba ou pelos EUA.
É preciso estudar os factos com alguma profundidade, antes de opinar sobre o assunto e classificar as pessoas envolvidas.
VG- Mas não parece haver um
grande desejo de realmente debater o assunto na sociedade portuguesa.
RF- Eu nasci em 1981. Não sabia nada dessa guerra, como
ninguém da minha geração sabe. É absurdo, houve quase um milhão de combatentes.
Se considerarmos as suas famílias e mesmo que contabilizemos apenas um filho
por casal, compreendemos que a guerra terá tocado directamente cerca de três
milhões de portugueses…
VG- E, em 1974 existiam em
Portugal nove milhões de pessoas. A guerra terá assumido um impacto
directo em cerca de um terço da população.
RF- Claro. Algo que tem um peso enorme na nossa sociedade e
que foi completamente silenciado. Percebemos que os militares que fizeram a
guerra foram – uma parte significativa deles – os mesmos que fizeram o 25 de
Abril. E a mesma instituição. Não seriam seguramente eles que iam começar por
sublinhar o que tinha corrido mal. Repara, um homem, um militar, que vai para
uma das frentes da guerra colonial, em 72 ou 73, parte como um herói e regressa
um ano ou dois depois como um assassino fascista. É uma reviravolta dramática.
VG- O texto foi construído a
partir de testemunho directos. Muitos dos episódios presentes no espectáculo
partem de factos reais.
RF- É verdade. O episódio da revolta de Alcoitão, por exemplo,
ilustra de uma forma aguda o que estava a dizer. Os militares internados –
alguns deles amputados de braços e pernas – decidem revoltar-se contra os
terapeutas, que subitamente passam a chamar fascistas aos homens a quem na
véspera tratavam.
VG- O que me agradou no teu texto e no espectáculo foi o facto de o libertares de duas coisas – da ideologia e do politicamente correcto. De um discurso ideológico catalogador e generalista, que ignora em absoluto o indivíduo e as circunstâncias concretas de cada homem, desprezando essas pessoas, tornando-as apenas em ferramentas de um sistema. E daqueles que, independentemente do ponto de vista ideológico que adoptam, ou mesmo não tendo nenhum, se dedicam à obscena tentativa de olhar esse período com o conforto e a sobranceria que a democracia nos proporciona
RF- Grande parte dos homens que iam para a guerra em África eram semi-analfabetos. Não tinham escolha.
VG- Rodrigo, no entanto tu fazes a peça para um público que –
arrisco dizer – partilhará, uma visão ideológica sobre a guerra. Ou, pelo menos
muitos dos espectadores o farão. A tua intenção, com o espectáculo, é
contrariar essa visão, ou não queres saber disso para nada?
RF- Não quera saber disso. Eventualmente, pretendo mostrar o conflito
existente hoje na sociedade portuguesa sobre este assunto. Agora, a minha
posição sobre a questão não a digo no espectáculo. Guardo-a para mim. Coloco em
cena duas posições opostas e cristalizadas sobre a questão, não a minha. O
importante é que o conflito que existe na sociedade portuguesa seja
identificado e se reflicta sobre ele, que haja discussão. Cito o Woody Allen:’
Se tivesse uma mensagem não fazia uma peça, escrevia uma carta’. O espectáculo
não propõe nenhuma solução, nenhuma síntese, pretende antes abordar o conflito.
VG- E entre os actores? Há o mesmo tipo de posições extremadas que
vemos no espectáculo?
RF- Os actores dividiam-se entre os dois pontos de vista
opostos que são apresentados. Esse conflito interno também passa para a cena. Não
deixa de me espantar que haja espectadores que, quando vão ver um espectáculo,
estejam à procura de respostas. Esperam que lhes seja servida uma solução. Que
a assumam como sua e transformem esses espectáculos em bandeiras. Penso que
isso é por o teatro ao serviço de causas alheias a arte.
VG- Quando entrevistei um conjunto de combatentes da FRELIMO, em
Moçambique, que lutaram contra as tropas portuguesas, encontrei um sentimento
que perpassava todos os testemunhos: aqueles foram os tempos. Aquilo tinha
significado, participei em algo que valeu a pena, que mudou a história. Mas há
uma diferença – aqueles homens sentiram-se vitoriosos, ganharam um país.
No entanto, pareceu-me ouvir-te comentar que encontraste entre os
combatentes portugueses sentimentos análogos?
RF- Pois foi. Eu participei num almoço comemorativo do
cinquentenário da partida de um batalhão para África. Fui anonimamente. A dada
altura perguntei a um senhor: ‘preferia ter ido a guerra, ou nunca ter posto lá
os pés?’ E a resposta foi que ele tinha preferido ir à guerra. Para muitos
destes homens foi a coisa mais importante, seguramente a mais marcante, que
lhes aconteceu nas suas vidas. E, depois, há uma coisa: eles eram todos novos,
portugueses ou africanos. (…)». Leia mais.
Ah, depois o Espectáculo estará em ALMADA:
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