Jornal Público | 20 OUT 2021
EXCERTO: «(...) O setor da Cultura vive a receber permanentes indignidades quer da esquerda quer da direita. À direita, de cada vez que são Governo, teimam numa absurda e simbólica desconsideração de nem ver o setor cultural digno de um ministério. Para mostrar bem que as pessoas de direita não querem cá saber de esculturas, teatros e outras coisas que deliciam os que têm demasiado tempo livre, a gente indolente de Lisboa, e sabem bem que o importante é vender pares de sapatos, construir rotundas e tudo o que seja estritamente material. À esquerda, as proclamações de amor são infindáveis, almejam ser os maiores patronos desde os Medici — porém nunca estão dispostos a por o dinheiro onde estão as palavras (sobretudo as ditas em campanha eleitoral). No entanto, este Orçamento do Estado (OE) para 2022 tem um simbolismo importante. Vem a seguir à pandemia, evento cujos efeitos se sentiram de forma bastante desigual por vários grupos populacionais e áreas económicas. Um dos setores mais afetados foi o cultural, praticamente congelado até há poucas semanas. Ora o OE2022 mostra, na Cultura como noutras áreas, que o Governo não tem qualquer intenção de fazer políticas específicas (para as quais é sempre preciso dinheiro) para corrigir os impactos desiguais da crise da pandemia. O OE2022 prevê um aumento de 8,5% de dotação orçamental para o ensino básico e secundário. Muito justo, tendo em conta que crianças e adolescentes foram dos mais sacrificados com a pandemia (e não só pelas aulas à distância). Precisando, entre outras coisas, de se preparar de modo que as paragens não afetem o futuro académico e profissional. Fora isto, os jovens têm um pequeno incentivo no pagamento do IRS, o setor cultural tem mais 80 milhões de euros e quase nada a acrescentar para os grupos mais afetados pela crise da pandemia. Políticas específicas para as mulheres? Não existem. O costume. Foram só os alvos preferenciais do desemprego da pandemia, a maioria das pessoas que pediu licença e interrompeu profissões para cuidar dos filhos e da educação dos filhos quando vieram para casa, além de outros incidentes não mensuráveis como a exaustão e a diminuição de produtividade durante a conjunção teletrabalho mais filhos. O OE2022 indicia um certo desligamento do PS do país. O Governo quis retomar a vida — e as finanças públicas — no ponto que estavam antes da pandemia. De resto, já com a elaboração do PRR se notou o mesmo: além da obrigatória (pela UE) transição digital e verde, os fundos destinam-se sobretudo a colmatar as falhas de investimento público dos últimos anos nas áreas do costume. O Governo parece não entender que um momento disruptivo como foi esta pandemia traz não só necessidades novas, como também alteração de perspetivas e preferências da parte da população. É uma incapacidade inquietante de perceber a mudança da realidade pós-pandemia. A dotação orçamental para o Ministério da Cultura é exemplificativa disto. A falta de vontade de compensar classes profissionais que viveram muitos maus momentos na pandemia. E a ausência de visão sobre a potencialidade económica das atividades culturais. É mais ou menos pacífico que as atividades criativas serão centrais na economia do futuro. À medida que a sustentabilidade ambiental entra nas escolhas dos consumidores, consumir um bem imaterial cultural — uma ida ao teatro, a uma exposição, a um concerto ou a um musical, etc. — crescerá nas preferências de consumo face a objetos com questionáveis pegadas carbónicas. Por outro lado, a criatividade humana é a centelha que as máquinas e a inteligência artificial não conseguem imitar nem substituir. Donde, serão aqui os empregos do futuro. Por fim, a ligação das atividades culturais ao turismo (e a um turismo bom e de valor acrescentado) é tão óbvia que espanta como um país dele tão economicamente dependente não as explora devidamente. (…)».
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