Sobre os próximos «DOUTORES» que, há muito, muitos têm gritado que são, hoje no Público/Ípsilon um trabalho de Gonçalo Frota - a não perder. Excerto: «(...) Márcia Breia, que se juntou à companhia para integrar o elenco de Pequenos Burgueses (a peça que inaugurou o Teatro do Bairro Alto, em 1975) e por lá ficou até 2010, afina pelo mesmo diapasão: “Há uma coisa que ressalvo sempre e hei-de dizer até entrar com os textos do Shakespeare na cova — era sério. Sério no sentido em que eles acreditavam profundamente naquele teatro e era muito honesto. Podemos depois discutir se era aquilo que as pessoas queriam ver, porque [a Cornucópia] afasta-se um bocadinho do gosto geral e éramos por vezes pouco compreendidos. Não era habitual os temas serem tratados daquela maneira, pôr-se determinado tipo de peças em cena que não tinham aparentemente a saída que outras mais simples teriam.” Na companhia, diz a actriz, aprendeu “a amar Gil Vicente de uma maneira que nunca amámos” e a “cultivar aquilo a que se chamava maldade ou tortura” em algum Shakespeare, “porque a forma como a Cornucópia a punha em palco era algo muito profundo, de rasgar a pele. Aprendi ali que o teatro não era uma exibição nem da beleza natural nem de coisa nenhuma; era uma maneira interessantíssima, quase lúdica, de estar em cena.” O rigor e a seriedade, sinónimos quase instantâneos do percurso da companhia e dos seus criadores, tinham por alicerces um enorme cuidado nas traduções (asseguradas pelos próprios ou por Manuel Gusmão, Fiama Hasse Pais Brandão, Jaime Salazar Sampaio, Luiza Neto Jorge, Maria Adélia Silva Melo e Márcia Breia) e um minucioso trabalho de dramaturgia que, na descrição de Luís Lima Barreto, actor que acompanhou a longevidade da companhia, passava por “estudar a peça em relação com o autor, com a época, com as ideias que estão dentro do texto, o que demorava”. “Estávamos muito tempo sentados à mesa, fazíamos uma análise muito profunda dos textos — algo que se manteve até ao fim — e nunca se começava a ensaiar antes de termos percebido completamente as peças. E depois havia sempre discussões muito interessantes, porque o Jorge e o Luis Miguel eram duas pessoas muito cultas, e tínhamos também connosco a Glicínia Quartin ou a Dalila Rocha.”
Despojamento e minúcia - Tendo estreado A Ilha dos Escravos e A Herança a 1 de Março de 1974, no Terraço do Capitólio, o 25 de Abril levou a que a Cornucópia de imediato começasse a ensaiar uma proposta politicamente mais incisiva. Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra, que partilhavam a direcção artística da companhia e se responsabilizavam pela escolha dos textos, logo propuseram ao grupo um Brecht. “E o Brecht que eles quiseram fazer foi O Terror e a Miséria no III Reich [estreado em Julho na Sociedade Incrível Almadense], que inclusivamente provocou uma certa irritação em determinados partidos políticos de esquerda que diziam ‘Então saímos do fascismo e agora vão apresentar uma peça sobre o fascismo?’”, lembra Lima Barreto. “Como se não percebessem que era exactamente isso que se queria, mostrar aquilo de que nos libertámos.” A partir daí, o discurso político estaria sempre presente, de forma mais ou menos directa, quer no percurso da Cornucópia quer, mais tarde, no dos Artistas Unidos. No imediato, de uma forma mais explícita, quando esse primeiro Brecht da Cornucópia, a peça com que Lia Gama chegou à companhia (em substituição de Raquel Maria), circulou numa “tournée promovida pelas Forças Armadas para levar Brecht ao povo português, que nunca tinha visto nada semelhante”, recorda a actriz. “Foi uma experiência”, diz, baixando o nível do romantismo ao recordar que “as condições eram precárias, as pessoas não percebiam nada, por vezes perdiam-se adereços e não se podia fazer o espectáculo e as viagens eram feitas em transporte militar.” E ainda explicitamente quando, pouco depois, Pequenos Burgueses, de Gorki, terminava com Luis Miguel Cintra ou Orlando Costa lendo excertos do Manifesto do Partido Comunista. “De tal maneira que, quando foi o 11 de Março [de 75, tentativa de golpe de Estado para colocar Spínola de novo no poder], estávamos a gravar isso na televisão e foi logo censurado”, lembra Lima Barreto. Comum aos relatos daqueles que acompanharam estes dois mestres do teatro português nos seus primeiros anos é a ideia de que eram actores sublimes e de que quando era Luis Miguel Cintra a dirigir este iniciava os ensaios com uma ideia claríssima da encenação, ao passo que Jorge Silva Melo envolvia mais os actores em cada criação. Lia Gama recorda que “o primeiro impacto podia ser complicado”. Ao ser chamada para Pequenos Burgueses (a primeira peça em que participou de raiz), lembra-se de demorar vários ensaios a perceber como o encenador queria que a sua Tatiana — “o drama personificado da pequena burguesia”, diz a actriz da sua personagem — saísse de palco em determinada cena até que, um dia, “num voo picado na diagonal” fez aquilo que Silva Melo pretendia. “Mas então porque é que não me disseste antes?”, perguntoulhe. “Porque eu também não sabia”, teve como resposta. “Isso ficou-me para sempre”, recorda. (...)».
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