Necessariamente, se puder, não perca a entrevista de Luís Miguel Cintra a que se refere a imagem. Entretanto, estas passagens: «(...)Em 1973 cofundou o Teatro da Cornucópia, que existiu até 2016, quando o fim foi ditado por uma redução drástica no apoio estatal que significaria uma perda de identidade. (...). Parkinson é um nome, o nome das rotinas às quais agora está preso. Herdou o mal e adiou o mais possível submeter-se a ele. Porém, não se lhe rendeu totalmente. No dia em que o visitámos, no seu 4º andar virado para a rua de um prédio de Lisboa, o Prémio Pessoa 2005 tinha recebido um volume acabado de editar pela Cinemateca — “Luís Miguel Cintra: O Cinema” — com entrevistas que lhe foram feitas, visão panorâmica de uma filmografia de perto de 60 títulos, entre os quais obras de Manoel de Oliveira, João César Monteiro e Paulo Rocha, para só citar alguns. Estava também a estudar um poema de António Barahona que irá ler num documentário sobre Eunice Muñoz. “Um poema dificílimo”, confidenciou. Tem encenado, tem dado conversas, conferências, tem lido, até poder, o Evangelho na missa. (...)
O que anda a fazer?
Ando a fazer o balanço do que foi a minha vida, a passar os olhos por todas as coisas que fiz, os espetáculos, as entrevistas que dei, as cartas que escrevi, as homenagens a pessoas, os discursos... Como fiz tudo muito depressa, sinto a necessidade de pensar sobre isso e de perceber qual foi a minha coerência de trabalho ao longo do tempo.
E o que descobriu até agora?
Percebi que tive sempre uma ideia de teatro de que hoje as pessoas falam muito pouco: o teatro é um trabalho de comunicação com os outros. Portanto, só faz sentido em função dos outros e não da exibição da nossa própria personalidade. Isso está a perder-se. Quando nós começámos a fazer teatro, antes e imediatamente depois do 25 de Abril, tínhamos uma vontade enorme de dizer coisas. Interessava se a peça dizia isto ou aquilo, e se era relevante transmiti-lo à sociedade.
O que faziam tinha um pendor pedagógico, didático?
Havia a ideia de que alguns tinham a sorte de ter estudos superiores e formação cultural. Essas pessoas tinham uma responsabilidade pública, que assumia algum didatismo. Na altura, dizia-se ‘formar’. Queríamos formar um público, formar espectadores. Ao ler o que escrevi ao longo dos anos, vejo uma reflexão permanente sobre o próprio ofício, como se estivesse sempre a passar uma espécie de exame de consciência. Não sei se herdei isso da minha formação católica: a ideia de fazer o bem, de generosidade, de viver para os outros. Nos primeiros dez anos da Cornucópia, fizemos uma peça que se chamava “A Missão”, de Heiner Müller, como forma de interrogar se a companhia tinha uma missão para com o público e qual seria o nosso papel de artistas, de intelectuais.
E havia uma missão?
Sim, havia.
Disse que hoje existe menos o trabalhar para os outros. É uma crítica? Vê os atores mais virados para si mesmos?
Vejo. O sistema de produção dos espetáculos e as condições de trabalho criadas foram uma tentativa de normalizar toda a atividade em termos de mercado. Essa normalização — essa ‘profissionalização’ — tem efeitos perversos. Passar para uma lógica de mercado transformou a profissão numa feira de vaidades. Desapareceu o assunto da própria atividade e passou a haver vedetas.
Desapareceu a arte pela arte?
Foi-me muito difícil perceber o que se estava a passar quando, tendo a Cornucópia acabado, e continuando a atividade das outras companhias, o discurso das pessoas se tornou um discurso laboral. Falava-se de que temos direito a comer, de que somos trabalhadores como os outros. Ora, no meio desse discurso, a palavra ‘arte’ ou a afirmação ‘somos artistas’ nunca foram ponderadas como deve ser. E isto não é recente. Saí do sindicato dos atores foi porque, quando se estabeleceu um contrato coletivo de trabalho, se fosse seguido à risca, só permitia a existência do teatro nacional e da televisão. Nenhuma das outras companhias tinha capacidade para o aplicar. Isso é gravíssimo. Atualmente, para salvarem o seu meio de subsistência, as pessoas estão a entrar na lógica da competição e da autoexibição; da venda dos ‘eus’ postiços que pensam que lhes garantem a sobrevivência na profissão.
O que vê quando olha para a situação do teatro hoje?
Não sei se o facto de me ter visto forçado a não trabalhar mais, e o facto de estar de fora, me leva a ver as coisas de uma maneira exagerada. Mas o que hoje sinto é que o teatro que fizemos até há muito pouco tempo corresponde a uma época que acabou. Olhando para o mundo em termos políticos e culturais, todos temos a noção de que alguma coisa muito importante mudou. Vamos necessariamente começar a viver de outra maneira. O Papa Francisco é o maior político que a Humanidade tem neste momento — e isso indica uma alteração profunda. Talvez ainda não nos saibamos mover dentro dessa mudança.
Como é que o teatro pode apanhar esse comboio?
Sendo fiel a si próprio e não querendo apanhar comboios que não são o seu. Nós começamos com uma vontade de dizer coisas ao mundo, de ter uma personalidade de grupo, de ter uma opinião e uma influência na opinião dos outros. Atualmente, isso tem de voltar a existir de outro modo. Se calhar, não é fazendo teatro de repertório: está-se a tentar voltar a um teatro de repertório ‘abastardado’, transformando os textos, mas sem o conhecimento desses textos. O teatro está a viver dos restos de uma época que já passou. E o que deve voltar a haver é uma perda do receio sobre as condições económicas e um apostar no que se quer dizer. O reconhecimento de que o que querem dizer é tão importante que não se importam de passar fome para o fazerem. Essa é a base para conseguir o que falta.
Hoje, o teatro está a lutar pelas mesmas condições porque a sua geração lutava.
Pois está. Infelizmente, o teatro ainda não descobriu para onde vai. Há várias pessoas cultas que já tiveram a ousadia de dizer que, se mandassem, acabavam com o teatro, que não devia haver teatro. Não sei se não têm razão. Porque não assisti ainda a um projeto culturalmente consistente que se apresente como uma necessidade de criar. Só vejo necessidade de programar. E a necessidade de programar é um problema de gestão económica.
Neste tempo seria possível surgir um projeto como a Cornucópia?
Acho difícil, porque nada na vida, tal como está organizada, empurra para projetos coletivos. Tudo o que era trabalho de grupo está a fragmentar-se em trabalhos individuais. É um problema de educação, de evolução. O sistema educativo está a criar burros, com uma pala de cada lado e à frente um computador. Está a criar funcionários. Ser funcionário é o contrário de alguém elaborar o seu próprio projeto. É treinar para ser o melhor servidor de um projeto alheio. Estamos a viver projetos que não sabemos de onde surgem, que a gente não escolhe. No fundo, é um só e único projeto, o de tudo ser dominado pelos valores do mercado.
Uma vez disse que a Cornucópia “foi mais importante para a evolução do teatro português do que seria possível quantificar em espectadores”. Estamos na era da quantificação?
Hoje quer-se saber imediatamente quanto custa, a que horas começa e acaba, quanto tempo dura — coisas que não têm nada a ver com o espetáculo. Os números comandam tudo. Quando se convida um ator para um projeto, ele pergunta se é subsidiado, quantos dias ocupa, em que datas há ensaios. Tenta conciliar aquilo com várias outras coisas. Para viver, os atores aprenderam a arrumar as diferentes tarefas tal e qual um condutor de táxi. (...)».
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E como raciocínios destes estarão rfletidos no ESTATUTO DO ARTISTA «em consulta»? E no processo de financiamentos (apoios, como são conhecidos) «recauchutados»? E na designada REDE DE TEATROS E CINETEATROS (voluntária) e sem memória? Pois é ..., se não ouvimos os nossos melhores... o que podem esperar os outros (comuns mortais) que criticam o que vai acontecendo?
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E boa ocasião para (re) visitar o site da Cornucópia (enquanto o temos) e ter consciência daquilo que um Governo de esquerda acabou:
A propósito lemebremos:OS «SITES» DA CULTURA E DAS ARTES | também à atenção dos Senhores Deputados ...
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