Começamos então a aproximar-nos do espírito Tribeca Lisboa Festival. A um “american way of life” alia-se o “SIC way of life” – a homofonia pode ser frondosa de sentidos. Isto quer dizer, nas palavras dos organizadores: é um festival que "eleva a cultura pop e o entretenimento, que celebra os filmes, as séries, a música e os podcasts" — vê-se quem são os filhos e os enteados — e "que junta em palco grandes estrelas nacionais e de Hollywood".
Trocado por miúdos: não se trata sequer de um evento cultural mas do culto do evento. O que não permite “evento” não existe. Se não é entertainment, não aparece. Até os noticiários da estação são estruturados como “divertimento”, extraindo dos factos da realidade, aquilo que antes eram as “notícias”, teasers para agarrar os telespectadores até ao fim.Alguém explicou a Robert De Niro o que é o cinema português?
Escalpelizando ainda mais a “maneira de ser SIC”: a sua incorrigível adição à autopromoção (é claro que os paroquiais programas da manhã do canal, mais dados a comida, crimes e sentimentos, e passatempos, já ouviram falar do bairro de TriBeCa em Nova Iorque, não tendo nunca falado de cinema português).
A “prata da casa”, como se diz, é sempre o conteúdo (muitas vezes trata-se de latão). Por isso os Globos de Ouro são o que são: uma arrogante e pelintra manobra que passa por cerimónia de entrega de prémios aos “melhores”. Trata-se tão só de impor ao mundo (português) uma cultura empresarial, uma “maneira de ser” (portuguesinha) que entende por cultura o fine dining, o gadget tecnológico, a viagem exótica, a telenovela… e sempre a miragem de Hollywood, algo que há muito não existe (não tinham reparado?)
É o espírito do Tribeca Lisboa Festival: não um festival de cultura, mas uma convenção empresarial, de pequenas celebridades, esperando das grandes, os Robert De Niro e as Whoopi Goldberg, efeitos de contágio. Para o Tribeca Lisboa Festival servem bem as palavras “CEO”, como título de podcast, “passadeira vermelha”, “conteúdos” e “next big thing”, aquilo de que uma das talks está à procura. Os hosts passam das suas efabulações diárias e fetichistas, no pequeno ecrã, sobre os bastidores do Orçamento do Estado para o palco das conversas sobre a realidade virtual, é o que está a dar, e as maravilhas do storytellin (...).
«Para que haja arte tem que haver um núcleo de invenção ou descoberta, enquanto a cultura artística é sobretudo absorção de efeitos produzidos pela obra, pedagogia do gosto, generalização do comentário, da divulgação e da massificação das maneiras de lidar com as obras».
Mais, do que nos acompanha na coluna ao lado:
«A experiência da escrita-e-da-leitura da poesia mostram, no seu fazer-se, que nós somos também isso mesmo: «corpos históricos singulares, percorridos por uma “escrita emaranhada”; uma voz escrita, inscrita e excrita – “tatuagem e palimpsesto”; em alguma medida, somos feitos e desfeitos pelo «poieín» [pelo fazer das artes]; pela poesia […]; pelo romance em que procuramos os nossos possíveis; pelas cenas de teatro onde corpos e vozes ardem à nossa vista; pelos filmes que nos correm no sangue; pela música que nos sopra os ventos nas árvores do cérebro; pelas pinturas que nos constroem o olhar capaz de folhear o visível; pelas fotografias em que ficámos para sempre (junto) de uma rocha batida pelas ondas; pelas esculturas em que tacteamos o desabamento e o voo do mundo; por essa dança que nos desenha no ar, enquanto voamos vagarosamente à beira do vulcão; pelas palavras que um dia nos disseram ou não disseram, por tudo aquilo que escolhemos ou nos escolheu; ou por aquela “lettera amorosa” que lemos e relemos e contudo não chegou a ser escrita, nem enviada. (…)».
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