José Carlos Vasconcelos no Editorial do JL desta semana |
EDITORIAL
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Cornucópia, um ‘adeus português’
«Há ja três ou quatro anos que Luis Miguel Cintra vinha alertando para o facto de não ser possível, com os cada vez mais escassos recursos de que dispunha, por força dos cortes nos apoios concedidos, a Cornucópia fazer a espécie de teatro e manter a qualidade e exigência que a si própria se impunha. Fundada há 43 anos, em 1973, a Companhia criada por Cintra e por Jorge Silva Melo (que em 1980 a deixou) desde o início constituiu um “caso” singular no nosso teatro. Querendo chegar a um diversificado largo público, com espetáculos de garantida qualidade, a liberdade conquistada a 25 de Abril de 1974 veio-lhe, como a todos, abrir portas e janelas ao sonho e à urgência de fazer coisas. E quantas e como o fizeram... Assim, a história de mais de quatro décadas da Cornucópia já preencheu, só com base nos espetáculos que levou à cena, dois alentados volumes, o segundo deles lançado no sábado, 18, na sessão com que a Companhia anunciou o seu fim. Mas o que não "cabe" nesse tipo de registo(s), é a grande dignidade e qualidade que sempre marcou o seu trabalho e o inestimável contributo que deu para a cultura e o teatro portugueses. De muitos modos e em muitos sentidos. Do exigente repertório, no qual avultam os clássicos de várias épocas, até à seriedade e o nível artístico com que são representados e ao rol de atrizes e atores que aí se formaram, começaram ou atuaram. Sem esquecer ou minimizar, em relação à Cornucópia, outras importantes companhias independentes há muito em atividade, sem esquecer também, para efeito de distribuição de verbas, como é essencial a existência de boas companhias nas várias zonas do país, deve-se reconhecer que a companhia tem um lugar muito próprio, até de algum modo simbólico, icónico, no teatro nacional. Como o tem o Luís Miguel, justamente distinguido com múltiplos prémios, sobretudo pela sua ação e o seu exemplo na Cornucópia, sem prejuízo todo o seu magnífico trabalho como ator e encenador. Não atendendo a nada disto, os referidos indispensáveis apoios foram minguando nos últimos anos para a Companhia, como para tudo que é cultura, sendo hoje cerca de metade do que já foram. O que levou a este fim anunciado. Com a contribuição, talvez, dos problemas de saúde e de idade de Cintra, indissociável de um projeto que sem ele não seria o mesmo, se é que seria viável, questão que creio ele próprio em tempos ter colocado. Problemas, aqueles, que vão diminuindo a capacidade para a verdadeira luta e prova de “resistência” que é (e nós aqui no JL que o digamos…) criar e manter, em Portugal, projetos artísticos, culturais, cívicos, que façam um trabalho sério e de fundo, prolongado no tempo. O fim da Companhia? Apesar de tudo, todos esperamos e desejamos que não. Embora talvez já seja tarde para não ser... A louvável presença e intervenção do Presidente da República no sábado, manifestando solidariedade e vontade de contribuir para evitar esse fim anunciado, bem assim a presença e as palavras do atual ministro da Cultura, ainda deixam uma ténue réstes de esperança em que a Cornucópia continue, com o Luis Miguel, a Cristina Reis (a excelente cenógrafa que há anos o acompanha na sua direção) e demais integrantes. Claro que se levantam muitos problemas, que aqui não possos agora abordar, sobre os financiamentos, as diferenças que se podem ou devem, ou não, estabelecer entre companhias - e por mim entendo que sim, com base em critérios claros e em que a subjetividade das avaliações fique restrita ao mínimo, etc. Mas, em última análise, tudo vai sempre, infelizmente, dar ao mesmo: a desvalorização objetiva da cultura, setor que recebe menos de 0,2% do Orçamento de Estado, quando já recebeu o triplo e quando pelo menos desde os Estados Gerais para uma Nova Maioria, de que "saiu" o primeiro governo de António Guterres, a meta fixada como justa e necessária é de 1% do OE».
________________________________PS Já depois de escrito este comentário, em comunicado (ler notícia na p. 4) a Cornucópia confirmou que iria acabar.
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