sexta-feira, 22 de novembro de 2024

TEATRO DA RAINHA |«Na República da Felicidade»| ESTREIA HOJE NO TECA - PORTO | DEPOIS CCC NAS CALDA RAINHA

 



ENTRETENIMENTO EM TRÊS PARTES

A peça é um tríptico com ligações que não são de causa efeito narrativos, antes de contrastes de sentido(s) e formas em montagem. A forma tríptico provém da pintura medieval e é axial para a complexidade narrativa, articula-se em painéis distintos. No caso, esta transposição modelar, no domínio da estrutura dramática, fugindo à linearidade do acto único ou do modelo por actos, convencional, mimético e dramatizado por via de regras de enredo e desenlace através de um fio condutor.
A IIª parte é a maior e afirma uma relevância dramatúrgica estratégica. Há nela uma dimensão cinematográfica, publicitária, performativa e referencial. É o revelador, a nu — palavra directa ao espectador —, do contexto cultural deste presente distópico em que as outras partes se fundam. É um levantamento torrencial das incongruências, monomanias, preconceitos, racismo, paternalismos e cegueiras de um mundo patológico, autodestrutivo, entregue aos mandantes e arautos manipuladores e à irracionalidade do autoritarismo que mente para se manter no poder em nome da economia e do consumo, do inimigo interno e externo, manobrando a massa idólatra votante pelo fetichismo corporal, pelo show off narcisista: o “espectáculo” (Debord), afirma-se como única verdade e a publicidade que o dobra é o fluxo da inverdade validada nos altares hipnóticos de um multi-ecrã omnipresente.

 Em “5 liberdades essenciais do indivíduo” Martin Crimp expressa uma panorâmica do nosso presente, desde a família destruída à venda da felicidade em download: uma cançoneta que a induz através de um “karaoke libertador”. Nenhuma das partes segue normas convencionais de escrita e os temas constituintes passam pelas ideias de destruição da família — Iª parte —, pelo anúncio das Cinco liberdades Essenciais do indivíduo — IIª parte —, e pela República da Felicidade — IIIª parte. Crimp fala-nos de Insulto ao público, de Peter Handke, que glosa livremente na IIª parte. As primeira e a terceira partes talvez estejam perto de Beckett (O jogo do fim), a IIIª de Brecht, a Iª contém um certo aroma ao anarquismo de A Boda dos pequenos burgueses. Mas as referências estruturantes de Na República da Felicidade são A Divina Comédia — contrafeita — de Dante, Inferno, Purgatório e Paraíso e a história sinistra de Jimmy Savile, o predador sexual condecorado pela Rainha de Inglaterra. De Dante retém o Inferno na cena familiar, o Purgatório na terra de ninguém da IIª parte e o Paraíso no Inferno da Terceira.
Crimp é um ironista radical. O que lemos é o retrato exposto dinamicamente de um mundo de narcisistas ego-centrados que a religião neoliberal do capitalismo cultural vende, cada sujeito na sua bolha brigando com o outro e os outros (locais e nacionais) de modo violento, predador, indiferente e burlão. A negação do holocausto banalizou-se, a equivalência entre o acontecimento trágico e a comida do gato pratica-se, a desculpabilização dos actos de predação sexual feita por uma explicação traumática — “Julgam que não posso virar um crime sexual a meu favor? Falso” — a deificação do corpo objeto consumível, são uma ameaça à vida em comum da cidade, à conquista dos direitos sociais e à defesa dos mais elementares direitos à própria existência.
Que nos importa o nazismo ou os palestinianos mortos, o que é que tenho a ver com isso? E que me interessa o serviço nacional de saúde? E que interessas tu se a mim me basto e vivo no meu filme?
Já dizia Foucault: é preciso defender a sociedade.F
ernando Mora Ramos

A I N D A 

 

 

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