ENTRETENIMENTO EM TRÊS PARTES
A
peça é um tríptico com ligações que não são de causa efeito narrativos,
antes de contrastes de sentido(s) e formas em montagem. A forma
tríptico provém da pintura medieval e é axial para a complexidade
narrativa, articula-se em painéis distintos. No caso, esta transposição
modelar, no domínio da estrutura dramática, fugindo à linearidade do
acto único ou do modelo por actos, convencional, mimético e dramatizado
por via de regras de enredo e desenlace através de um fio condutor.
A
IIª parte é a maior e afirma uma relevância dramatúrgica estratégica.
Há nela uma dimensão cinematográfica, publicitária, performativa e
referencial. É o revelador, a nu — palavra directa ao espectador —, do
contexto cultural deste presente distópico em que as outras partes se
fundam. É um levantamento torrencial das incongruências, monomanias,
preconceitos, racismo, paternalismos e cegueiras de um mundo patológico,
autodestrutivo, entregue aos mandantes e arautos manipuladores e à
irracionalidade do autoritarismo que mente para se manter no poder em
nome da economia e do consumo, do inimigo interno e externo, manobrando a
massa idólatra votante pelo fetichismo corporal, pelo show off narcisista:
o “espectáculo” (Debord), afirma-se como única verdade e a publicidade
que o dobra é o fluxo da inverdade validada nos altares hipnóticos de um
multi-ecrã omnipresente.
Em
“5 liberdades essenciais do indivíduo” Martin Crimp expressa uma
panorâmica do nosso presente, desde a família destruída à venda da
felicidade em download:
uma cançoneta que a induz através de um “karaoke libertador”. Nenhuma
das partes segue normas convencionais de escrita e os temas
constituintes passam pelas ideias de destruição da família — Iª parte —,
pelo anúncio das Cinco liberdades Essenciais do indivíduo — IIª parte
—, e pela República da Felicidade — IIIª parte. Crimp fala-nos de Insulto ao público, de Peter Handke, que glosa livremente na IIª parte. As primeira e a terceira partes talvez estejam perto de Beckett (O jogo do fim), a IIIª de Brecht, a Iª contém um certo aroma ao anarquismo de A Boda dos pequenos burgueses. Mas as referências estruturantes de Na República da Felicidade são A Divina Comédia —
contrafeita — de Dante, Inferno, Purgatório e Paraíso e a história
sinistra de Jimmy Savile, o predador sexual condecorado pela Rainha de
Inglaterra. De Dante retém o Inferno na cena familiar, o Purgatório na
terra de ninguém da IIª parte e o Paraíso no Inferno da Terceira.
Crimp
é um ironista radical. O que lemos é o retrato exposto dinamicamente de
um mundo de narcisistas ego-centrados que a religião neoliberal do
capitalismo cultural vende, cada sujeito na sua bolha brigando com o
outro e os outros (locais e nacionais) de modo violento, predador,
indiferente e burlão. A negação do holocausto banalizou-se, a
equivalência entre o acontecimento trágico e a comida do gato
pratica-se, a desculpabilização dos actos de predação sexual feita por
uma explicação traumática — “Julgam que não posso virar um crime sexual a
meu favor? Falso” — a deificação do corpo objeto consumível, são uma
ameaça à vida em comum da cidade, à conquista dos direitos sociais e à
defesa dos mais elementares direitos à própria existência.
Que
nos importa o nazismo ou os palestinianos mortos, o que é que tenho a
ver com isso? E que me interessa o serviço nacional de saúde? E que
interessas tu se a mim me basto e vivo no meu filme?
Já dizia Foucault: é preciso defender a sociedade.Fernando Mora Ramos
A I N D A
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