quinta-feira, 2 de julho de 2020

CASTRO GUEDES | «Da catástrofe nas artes cénicas»




 De lá:
« É sabido que a pandemia, tendo atacado generalizadamente o mundo do trabalho, fustigou ainda mais neste, os precários. E, dentro deste vastíssimo segmento, de forma cruel os sectores artísticos. Por isso, embora chocante, não me espantei ao ouvir na Antena 2 uma reportagem sobre vários profissionais do sector terem de recorrer a apoios de voluntariado para comer uma refeição quente; e não são nem 1, nem 10, nem 100 – são muitos.
 As origens deste problema trazem à trela questões como os falsos recibos verdes. O trabalho de um actor ou bailarino é, à evidência, um trabalho dependente: tem horário certo por terceiro estabelecido, tem cumprimento de tarefas hierarquicamente determinadas, tem lugar específico onde se realiza. Mas outros aspectos, além desta irregularidade laboral jurídica, extensível a muitos outros casos, tem, a montante, outros males, que importa enumerar, remetendo-me ao teatro, por ser o domínio que melhor conheço, mesmo sem ser exaustivo:
- A destruição do tecido produtivo teatral, a ponto de até a Companhia do Teatro Nacional Dona Maria ter sido extinta e ter sido criado o Teatro Nacional de São João sem uma. Situação, ainda assim mitigada (que pode induzir em erro) por ter trabalhadores com outro vínculo laboral; mas isso não encobre a ausência de uma Companhia, que exige um elenco fixo alargado, equipas técnicas, de produção, serviços administrativos e a possibilidade de organização de uma política de reportórios em cena de ano para ano;
- A ideia falseada do crescimento do sector artístico por via das expectativas criadas a dezenas e dezenas de jovens que completam anualmente a sua formação especializada (Superior ou Profissional), acabando a esmagadora maioria a subsistir em áreas que não excluem os Call-Centers ou as Linhas de Caixa dos Hipermercados;
- A atomização de verbas dos financiamentos estatais, já de si insuficientes, em ‘terminações’ de autêntica atribuição em lotaria, sem um triste vigésimo premiado;
- Uma ‘Teia’ Nacional de Teatros (auto-intitulada Rede) de gestão de evento, liquidando o conceito de carreira e, consequentemente, de captação e formação de públicos, como base, mesmo que supletiva, de custos de produção e de hábitos de fruição;
- A ideia de que o basear o apoio aos projectos e valores emergentes incentiva o rejuvenescimento da vida teatral, quando apenas serve dois fins: criar ilusões em quem está a despontar e depois imergir no esquecimento e o próprio rejuvenescimento integrado e continuado, quer nas estruturas pré-existentes, quer em novas a quem se assegure futuro.
Tudo isto resulta na transformação de uma profissão em ‘biscates’ ocasionais (a intermitência, que nem sazonalidade chega a ser).
Todavia, a estes todos se junta um outro, estrutural, a que pouco se tem prestado atenção. Refiro-me à inexistência de um Certificação Profissional e a um Estatuto da Profissão. Não é coisa fácil, pois que não só não pode ser o Estado a definir sem mais, mas também – ou muito menos – o movimento sindical, felizmente livre e não obrigatório como no Estado Novo. Mas não é tarefa impossível. Pelo menos para evitar que quer os que têm prática de dezenas de anos, mesmo que sem formação (porque a oferta era escassa para se aceder a ela), quer os que a têm, estejam, do ponto de vista de direitos e deveres laborais, nas mesmíssimas condições que uma cara ‘laroca’ contratada para a telenovela na Praia do Tamariz. De forma a que, a prazo, passe a ser exigível a formação académica e mesmo um estágio profissional posterior.
É tempo de reivindicar esses instrumentos, de exigir uma contingentação moderada de Cursos de Teatro (número de alunos e de turmas e com maior exigência na avaliação). E, não menos importante, de combater pela reconstituição de um tecido produtivo teatral regular, sustentável e sustentado. O que pede como prioridade uma Lei de Bases do Teatro e/ou das Artes Cénicas. E a firme determinação de olhar para o essencial, a par de medidas de excepção de apoio à tragédia social. É uma tarefa inadiável do Estado e dos agentes políticos, sim; mas também da consciência dessa necessidade pelos artistas.
P.S.: E alerta com a imbecil ideia de que as artes cénicas podem ser audiovisuais. Tão imbecil quanto imaginar que as artes audiovisuais podem ser cénicas. Ambas úteis e necessárias, são coisas muito diferentes e que não se substituem umas às outras».
castroguede9@gmail.com
 

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