domingo, 3 de março de 2024

FALECEU FERNANDO CORREIA | «(...)Houve um dia, foi no dia 25 de abril. A cela onde eu estava dava para o parque de estacionamento do Estádio Nacional (…) aparecem lá uns casacos, umas buzinas e uns faróis. [Pensei]: «Estes gajos estão malucos? O que é que se passa aqui?». [Risos] O facto é que sentia bater as paredes por todos os lados - que eram os presos que falavam na linguagem do bater na parede, não sei como é se chamava, que tinha acontecido qualquer coisa. A certa altura, passado uma hora - ou duas ou três - ouviu-se uma voz: «O fascismo caiu! O fascismo caiu!», lá de uma janela qualquer. Alguém que tinha percebido os códigos todos e já estava a par.(...)»

 

 
E veja este seu testemunho  em texto e vídeo. De lá, este excerto:

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Nessa altura no Diário Popular quem mandava ainda era o Doutor Francisco Balsemão, que queria renovar a redação e fez uns cursos para quem quisesse inscrever-se – universitários -porque na altura jornalistas universitários era coisa que não havia. Pior do que isso, pior no sentido jornalístico, é que a maioria dos jornalistas, até aos anos 60 - também aí os anos 60 são um marco - os jornalistas tinham vários empregos. O jornalista ia fazer uma perninha ao jornal, recebia x, e depois ia fazer outra coisa qualquer - ou escriturário, ou empregado de balcão, qualquer coisa.

Sei que eu me inscrevi no curso. Eram 30 inscritos, os quatro primeiros entravam para a redação do Diário Popular. Fiz o curso. Praticamente não conhecia ninguém daqueles jovens que lá estavam, não fiquei nos quatro primeiros - fiquei em quinto. Mas o Balsemão fez-me a gentileza de também pôr o quinto. [Risos] de maneira que devo ao Balsemão essa gentileza de ter contribuído diretamente para eu entrar no jornalismo. Na altura, fui da direção do sindicato dos jornalistas, a nível da movimentação sindical criaram-se estruturas mais atuais, relativamente às que havia na altura, que vinham do princípio do século quase, que permitissem uma defesa mais, desde logo, material - é por aí que tem de começar, para motivar as pessoas - mas também noutras exigências. Uma delas nas habilitações - não é qualquer pessoa com a 4ª classe, não quer dizer que não haja pessoas com a 4ª classe que dariam excelentes jornalistas, mas pronto, tinha-se de criar uma exigência, umas linhas. Isso foi uma reivindicação que na altura o sindicato fez e se conseguiram alguns passos nesse aspeto.

Isto criou um clima dentro do jornalismo, que, a nível do PCP, exigia uma outra estrutura que não existia antes, uma estrutura mais individual, de haver jornalistas comunistas - como havia jornalistas dentistas, ou arrumadores, ou motoristas. Então o Partido, por esses anos, resolveu criar uma estrutura estruturada - um organismo como se diz na linguagem do Partido - que se preocupasse com os problemas do jornalismo. Formada por jornalistas, que tomasse conta, se preocupasse e tivesse ações de mobilização e de esclarecimento, como é trabalho habitual nas células do partido, no sentido de criar uma frente democrática. Defendendo os valores democráticos e que tentasse espalhá-los entre jornalistas, na qual eu participei, como membro do partido. A luta, no sentido partidário, ativa, foi enquanto jornalista.

Oito dias antes do 25 de abril fui preso. Tive a sorte de oito dias antes do 25 de abril ter sido preso. Foi um camarada funcionário que denunciou uma série de camaradas jornalistas, que foram presos.

Foi de madrugada - eram cinco da manhã, ou seis da manhã - que foram lá a casa e me levaram para um volkswagen que estava cá em baixo. Eu pedi para fazer qualquer coisa: «Posso ir ali comprar tabaco?» e os gajos olharam para mim como quem diz [Risos]: «Estás a pensar em dar à sola?» - e lá foi um comigo comprar o tabaco. E pronto, comprei o tabaco. [Risos] Não me estava a apetecer nada, nem pensava nos cigarros - foi só para chatear, «Deixa lá ver o que é que eles dizem». (...)

Depois vim aqui [para] Caxias, onde praticamente não cheguei a ser interrogado. Isto foi nas vésperas do 25 de abril - os tais sete dias antes do 25 de abril. Fui apenas aquilo que se chamava identificado: fotografias, «[Quem é o] pai, mãe, o que é que fez?», a ficha, preenchi a ficha. E voltei para a prisão. Estava isolado.

Houve um dia, foi no dia 25 de abril. A cela onde eu estava dava para o parque de estacionamento do Estádio Nacional (…) aparecem lá uns casacos, umas buzinas e uns faróis. [Pensei]: «Estes gajos estão malucos? O que é que se passa aqui?». [Risos] O facto é que sentia bater as paredes por todos os lados - que eram os presos que falavam na linguagem do bater na parede, não sei como é se chamava, que tinha acontecido qualquer coisa. A certa altura, passado uma hora - ou duas ou três - ouviu-se uma voz: «O fascismo caiu! O fascismo caiu!», lá de uma janela qualquer. Alguém que tinha percebido os códigos todos e já estava a par.

Ainda passei lá uma noite. Eu tinha papel para escrever e quando soube o que é que estava a acontecer - há bocado não referi isso, mas entre o Diário Popular e a minha prisão eu tinha entrado para o Diário de Lisboa. Estava na redação do Diário de Lisboa. Portanto [pensei]: «Estou aqui, vou escrever o que é que se está a passar». E escrevi uma coisa.(...).

E da sua passagem pelo Diário Popular há gente aqui no Elitário Para Todos que o lembra: atento, sereno, sorridente ... . E foi-se acompanhando o seu percurso de vida. Que cheio! Sempre comprometido. Obrigado, Fernando Correia.

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