«Se houvesse uma espécie de “período horrível” para o actual simpático ministro
da Cultura, ele teria forçosamente sido aquele em que no intervalo de semanas
ou apenas dias se soube de sucessivos “casos” ocorridos em monumentos e museus
nacionais, cada um deles mais extraordinário do que o outro.
Primeiro, veio a público a putativa (e entretanto
confirmada – “Bruno Navarro confirmado na presidência da Fundação do Vale do
Côa”, Publico, 20.7.2017) nomeação para Presidente da Fundação Côa
Parque de um militante activo do Partido Socialista em Vila Nova de Foz Côa
(homem de mão do anterior Presidente da Câmara do PS e actual deputado
municipal pelo mesmo partido). Qualificações adicionais? Sim, a de ser
investigador de História Contemporânea e, pelo que dizem alguns conhecedores da
matéria (embora sem confirmação absoluta, deve sublinhar-se), defensor da
construção da barragem quando se travou a luta em defesa das gravuras
(“Arqueólogos contestam escolha de Bruno Navarro para o Côa”, Publico,
4.5.2017). Quase ao mesmo tempo, aconteceu o escândalo do vandalismo perpetrado
sobre algumas gravuras (“Uma das gravuras de Foz Côa foi vandalizada”, TSF,
28.4.2017; “Vandalismo de gravura em Foz Côa: dois homens constituídos
arguidos”, DN, 24.5.2017). E assim ficou ofuscado o principal, ou seja, a
oportunidade perdida de refundação da Fundação, sendo os seus novos estatutos
quase tão velhos e desajustados como os anteriores. Uma Fundação tratada provincianamente,
onde na Administração não existe nenhum especialista em arqueologia ou museus
(“Novo conselho diretivo do Coa sem um único arqueólogo”, DN, 21.7.2017)
e no Conselho Consultivo, a reunir duas vezes ano, fadado para ser pouco mais
do que decorativo, existe apenas um (o representante da Associação dos
Arqueólogos Portugueses), entre vinte e quatro membros. A tudo, o ministro na
sua simpatia diplomática, mas nonchalante, respondeu que se tratava
somente de pormenores (“Ministro da Cultura não reconhece risco no Parque
Arqueológico do Côa”, Expresso, 15.6.2017) e o futuro de hidromel
estaria já aí à frente, ao virar da esquina.
Estando as coisas neste pé, houve notícia de que por
uns dias as galerias principais do Museu Nacional dos Coches tinham sido
convertidas em stand de automóveis. Compromisso antigo e fonte de
receita bem-intencionada, por certo, que infelizmente coincidiu com a segunda
(ou já terceira?) reabertura, imposta pelos timings da promoção
ministerial, desta vez com alguma museografia instalada. Por mim e mesmo
correndo o risco de magoar amiga de sempre, directora do Museu, afirmei
imediatamente que considerava “altamente impróprio” aquele uso dos espaços
expositivos (“Exposição de automóveis elétricos no Museu dos Coches dá
faísca”, JN, 25.5.2017). E dele retenho agora uma lição para o futuro: a
programação museológica deveria ser feita com grande antecedência e não ficar
dependente de agendas ministeriais. Deveria depois ter prioridade sobre
compromissos comerciais. Estes não deveriam invadir os espaços expositivos,
senão no âmbito de discursos coerentes e sempre em proporções tais que as
colecções mantenham a sua centralidade e a sua dignidade, que significa o seu
espaço vital de respiração.
Soube-se depois que num dos claustros do Convento de
Cristo em Tomar tinha sido autorizada a realização de uma fogueira alimentada
por mais de quatro dezenas de botijas de gás e com projecções de chamas a quase
vinte metros de altura, havendo ainda relatos de danos provocados no próprio
edificado (“Convento de Tomar parcialmente destruído durante gravação de um
filme”, RTP Notícias, 2.6.2017). Tudo em nome do ganho de alguns cobres,
milhares em orçamentos cinematográficos de milhões. Adicionalmente, soube-se
que também ali parecem existir “esquemas” ou cambalachos com a arrecadação
privada de receitas de bilheteira, não entradas nos cofres públicos. Evitando
comentar esta última dimensão da questão, para que abriu inquérito (“Ministro
da Cultura quer inquérito ao Convento de Cristo terminado em 20 dias”, Publico,
6.7.2017), mais uma vez o ministro desdramatizou a primeira, dizendo que tinha
sido informado serem apenas fogachos – daqueles que nenhuma ASEA permitira em
casa de pasto de bairro.
Quase na mesma altura, juntou-se à banda o Mosteiro
dos Jerónimos. Já há tempos ali tinha sido detectada prática de apropriação
privada de receitas de entradas, como parece ter acontecido em Tomar. Mas agora
a coisa é mais grave e não envolve apenas a “arraia-miúda”: parece que entidade
acima de toda a suspeita, estrangeira de nome e de suposto prestígio, como
convém para pôr em sentido o pagode, em cujos corpos gerentes participa a
própria directora do monumento, vinha a servir de barriga de aluguer em…
alugueres do espaço público, para usos privados (“Mosteiro dos Jerónimos
investigado por festas privadas”, Observador, 6.6.2017). Ainda que
possamos candidamente admitir que tudo ali tenha sido bem-intencionado e
reconheçamos (como o fazemos) que os trabalhos de restauro dos Jerónimos muito
ficam a dever ao contributo financeiro daquela entidade e estão a ser
executados de forma irrepreensível, o que subsiste é o sentimento de
promiscuidade entre público e privado, ou de “salve-se quem puder” em face da
escassez de verbas e dos constrangimentos ditados pela burocracia da
contabilidade pública. Mais uma vez o ministro evitou comentar, refugiando-se
neste caso no argumento estafado e totalmente intolerável do “segredo de
justiça” – como se lhe não fosse exigível perante o País que sobre esse dever
de segredo não tivesse de colocar um outro, qual seja, o da prestação de
contas, dito “responsabilidade política”, com tempos de resposta não diferíveis
e muito mais céleres do que os da roda judiciária.
Como se tudo isto não bastasse, acrescentou-se o caso sui
generis da reinstalação dos serviços de algo que nem sequer formalmente já
existe: O Centro Nacional de Arqueologia Naval e Subaquática (CNANS).
Instalados “precariamente” há largos anos no MARL, em Loures, onde já pagaram
renda em valor muito superior a um milhão de euros, e com ordem de despejo
desde o ano passado (“A arqueologia náutica e subaquática portuguesa está a
naufragar?”, Publico, 29.5.2017), soube-se que tinham mesmo de sair e
que já andavam funcionários públicos a procurar novas instalações nas agências
de mediação imobiliária. Afinal, saiu da cartola ministerial (“Centro Nacional
de Arqueologia Náutica e Subaquática vai sair de Loures”, DN, 6.7.2017)
um prato requentado e já posto no congelador (alguns pensavam que no lixo) há
quase dois anos, quando se concluiu que não havia dinheiro para lhe pagar os
ingredientes: a transferência para antigo armazém situado em Xabregas (um
fim-de-linha, como se recordam os mais velhos), propriedade pública, mas onde
se requerem obras de valor não inferior a um milhão de euros, para durarem um
ano. Ah, e tudo acrescido do pagamento de renda não inferior ao que se paga em
Loures. Pródigo na promessa de amanhãs doces, o ministro disse que o dinheiro
viria de um fundo europeu de assistência a Portugal nestes domínios; apenas
esqueceu de acrescentar, ou não foi informado, que a candidatura para tal nem
se quer ainda existe e, coisa de somenos claro, o tal fundo serve para formação
de quadros e não propriamente para pagar alvenaria e trolhas.
Os “casos” sucedem-se, pois. E outros poderiam ser
acrescentados. Será tudo isto apenas coincidência? Estará o simpático ministro
a ser vítima somente de uma conjuntura astral desfavorável, porventura até já
arrependido da sorte que lhe coube e, quem sabe, disposto a “ir à bruxa”?
Infelizmente para o País (talvez felizmente para o ministro, no seu intrincado
labirinto) não se trata de astrologia. Nem o “ir à bruxa” pode resolve os
problemas. Aquilo que verdadeiramente une e explica toda esta catadupa de
“casos” é uma mistura explosiva entre ideologia liberal de mercado, promotora
da desqualificação e mesmo retirada do Estado de amplas áreas da vida social, e
inimaginável falta de meios na área da Cultura.
Quanto aos meios basta observar que há cerca de década
e meia discutíamos ainda como fazer aumentar a percentagem da Cultura no OE de
0,6 (ou 0,8, conforme as contas) para pelo menos 1%. Hoje verificamos que está
em 0,1% (ou 0,3%). Se há números que dizem tudo, este é um deles.
Quanto ao principal, a ideologia de suporte da
governação, ela tem feito o seu caminho, às claras ou insidiosamente. Às
claras, pela redução, ou mesmo extinção, de serviços. Pelo despovoamento em
meios humanos, com impressionante decréscimo de competência e capacidades
operacionais. Insidiosamente porque, sendo a palavra de ordem “fazer dinheiro”
a todo o custo, chegámos a um ponto em que, por convicção ou por espírito de
missão, muitos dirigentes dos serviços que dão a cara perante os cidadãos
incorporaram já em si a ideia de que lhes é legítimo usar os espaços sob sua
guarda como centros comerciais multiusos, vendendo a alma, senão mesmo o corpo.
Aqui chegámos. E o que mais espanta, não é termos aqui
chegado. É daqui parecer não sabermos sair. No caso do actual Governo e do seu
bonacho ministro da Cultura pode nem sequer ser não querer. É apenas não saber
– e não haver junto dele quem lhe diga como fazer».
Luís Raposo
Presidente do ICOM Europa e Vice-Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses.
Presidente do ICOM Europa e Vice-Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses.
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